Assim se esquece o interior?
Há um estado de espírito geral, subconsciente, que desfavorece o interior.
O recentíssimo relatório estratégico da Região de Lisboa e Vale do Tejo (RLVT) vem pôr a nu o modo como, sem querer, o “pensamento dominante” – de que nos falava o Presidente da República em artigo no PÚBLICO – desconsidera o interior. O relatório, bem estruturado, é particularmente útil porque revela que há um geral estado de espírito, subconsciente, que desfavorece o interior, desfavorece-o objectivamente. Esse estado de espírito é decisivo. Atravessa, fora do interior, a intelectualidade e a política, a tecnocracia e a burocracia, atinge e condiciona pessoas que se movem nas estruturas e instituições do poder, pessoas que, no fundo, de uma forma ou de outra, se pronunciam sobre políticas públicas.
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O recentíssimo relatório estratégico da Região de Lisboa e Vale do Tejo (RLVT) vem pôr a nu o modo como, sem querer, o “pensamento dominante” – de que nos falava o Presidente da República em artigo no PÚBLICO – desconsidera o interior. O relatório, bem estruturado, é particularmente útil porque revela que há um geral estado de espírito, subconsciente, que desfavorece o interior, desfavorece-o objectivamente. Esse estado de espírito é decisivo. Atravessa, fora do interior, a intelectualidade e a política, a tecnocracia e a burocracia, atinge e condiciona pessoas que se movem nas estruturas e instituições do poder, pessoas que, no fundo, de uma forma ou de outra, se pronunciam sobre políticas públicas.
O relatório é datado de 28 de Maio passado. Intitula-se Estratégia 2030 da RLVT, um documento de interesse e muito significativo. Mais significativo ainda, porque corresponde a um “desafio” do ministro do Planeamento e Infraestruturas. Tem como subtítulo: Competitividade Internacional e Coesão Territorial e Social da RLVT 2030; como não podia deixar de ser, aí figura a palavra coesão, de todas a mais gasta quando em causa está também o interior, mesmo que este não seja pelo nome chamado a parte nenhuma.
O interior desnomeado
Hoje há uma definição legal do interior. Consta da portaria 208/2017. É surpreendente que o interior, como conceito legal e conjunto de territórios bem precisados, esteja literalmente ausente de todo o relatório da RLVT. Surpreendente ainda, porque se sabe que oito concelhos da RLVT pertencem ao interior, em noção legal. Concretamente: Abrantes, Chamusca, Constância, Coruche, Ferreira do Zêzere, Mação, Sardoal, Vila Nova da Barquinha; e ainda várias freguesias de Tomar e Santarém. O relatório da RLVT ignora em absoluto, pois, a noção legal do interior; e ignora igualmente o “Programa Nacional para a Coesão Territorial” e a “Unidade de Missão para a Valorização do Interior”, existentes desde 2016. Constata-se que uma parte do Estado administrativo está de costas voltadas para outra parte do Estado legislador que, sobre o interior, publica duas resoluções de Conselho de Ministros de 2016, mais a citada portaria, mais uma alteração ao Estatuto dos Benefícios Fiscais em 2017.
O silêncio sobre o conceito legal do interior contrasta, desde logo, com o facto de as tragédias de 2017 terem ocorrido em concelhos do interior relativamente perto da periferia da RLVT (por ex., Pedrógão Grande dista menos de 50 km de Ferreira do Zêzere). E contrasta, depois, com o principal foco do relatório que é assumidamente Lisboa; foco que aliás proporciona umas sentenças curiosas como esta: “O pólo agregador de Portugal e´ Lisboa”, pg. 54. Ou esta: “E´ em Lisboa que se ganha ou se perde a converge^ncia da economia portuguesa”, pg. 18. Está tudo dito.
O spillover e as políticas públicas
O conceito de coesão anda frequentemente de braço dado com o chamado efeito difusor (spillover) do litoral sobre o interior. Os argumentos de coesão e spillover surgem, por ex., na pg. 18 do relatório: o contributo da RLVT poderá ser alavancado “pela utilizac¸a~o dos FEEI (Fundos Europeus Estruturais e de Investimento) em projectos que se destinem a servir objectivos conjuntos de competitividade internacional com impactos sectoriais e territoriais alargados”, etc. Os ditos impactos sectoriais e territoriais configuram o celebrado spillover.
A coesão e o spillover ajudam o relatório a propor “grandes projectos estruturantes”, GPE, são nove ou dez projectos. O cluster do mar é um deles. Outros são o cluster da saúde de precisão; as escolas e centros de excelência internacional; o agro-alimentar e florestal, etc. Os GPE da RLVT poderão ser encadernados num novíssimo “Plano Nacional de Cooperação Inter-regional”, o qual poderá convocar outras regiões além da RLVT. Sob esta capa do plano inter-regional, emerge o efeito spillover da RLVT, por ex., pg. 67. Haverá quem veja nisto do plano e dos GPE um engano do resto do país, em especial do interior, e talvez da própria Comissão Europeia. Porque, correlativamente, está claro, o apoio das políticas públicas é pretendido pela RLVT, desde logo, no expressivo título III “10 Pilares Estratégicos para Novas Políticas Públicas”. E por ex., nesta incisiva frase de um dos pilares, pg. 40: “Alinhamento dos incentivos pu´blicos.” Alinhar, ou realinhar, incentivos com a estratégia 2030 da RLVT, num importante relatório em que, directamente, o interior é desaparecido.
O spillover ao contrário
Acho graça ao argumento do spillover. A teoria do spillover é cativante mas, julgo poder dizê-lo, está longe de ter passado com boa nota na prática inter-regional. No interior as pessoas estão cansadas de engolir a lógica do efeito spillover como justificativo seja do desvio de verbas da coesão, seja da instituição de regimes fiscais gerais e não discriminantes. Há várias vozes do interior que têm denunciado os abusos do spillover. Penso que têm razão.
Podíamos argumentar ao contrário, em duplo sentido.
Em primeiro lugar, muitas vezes, o efeito spillover nega-se a si próprio, porque resulta em efeito ‘centriptor’ em vez de ‘difusor’, acaba por puxar mais para o centro, atrai jovens do interior, desmotiva e despovoa o interior.
Em segundo lugar, devemos considerar também um spillover do interior para o litoral, isto é: os efeitos difusores positivos que novas políticas do interior, ora despovoado, possam provocar no litoral, adensado e engorgitado. E, a outro nível, tivemos e temos o caso notabilíssimo do spillover da Autoeuropa, inter-sectorial, intra-regional, inter-regional para o litoral e para o interior, que começou nos inícios dos anos noventa e que, sublinhe-se, é um spillover que parte do interior, porque na altura Palmela era interior, hoje não é.
Falta um estudo por equipa independente e multidisciplinar, congregando cientistas sociais e do território, que pudesse avaliar o efeito spillover ao longo, por ex., dos últimos 20 anos e responder a perguntas como esta: tudo incluído, o balanço do efeito spillover no interior é positivo ou negativo?