Quem disse que a renda de bilros não pode ser doce?
Há ciência, tradição e coração por trás destas bolachas que nasceram da cabeça de duas universitárias que quiserem criar um doce embrulhado em renda de bilros de Peniche.
É uma arte com mais de quatro séculos que terá chegado a Peniche, terra à beira-mar plantada, pelas relações comerciais entre marinheiros e pescadores vindos dos portos de Bruges e Antuérpia, na Flandres. A renda de bilros acabaria por se transformar no exemplo maior do artesanato desta comunidade piscatória pelas mãos das mulheres dos pescadores, que assim tentavam ganhar mais algum quando a pescaria dos homens não corria de feição.
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É uma arte com mais de quatro séculos que terá chegado a Peniche, terra à beira-mar plantada, pelas relações comerciais entre marinheiros e pescadores vindos dos portos de Bruges e Antuérpia, na Flandres. A renda de bilros acabaria por se transformar no exemplo maior do artesanato desta comunidade piscatória pelas mãos das mulheres dos pescadores, que assim tentavam ganhar mais algum quando a pescaria dos homens não corria de feição.
Só que com o tempo, a arte foi perdendo importância, e as almofadas, as linhas, os alfinetes e os bilros foram perdendo rendilheiras. Na tentativa de dar a conhecer a tradição, a câmara de Peniche bateu à porta da Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, em 2015, para divulgar a renda de bilros junto dos alunos. “Era para mostrar a renda às pessoas da idade deles. Quando se pensa em rendas lembramo-nos dos naperons de casa da avó”, diz Carla Lobo, professora da escola de design.
Foi assim que se lembraram de desafiar os alunos a criar peças inspiradas em Peniche, que promovessem os produtos e as actividades económicas locais. O desafio colheu entre os estudantes, que lhes apresentaram ideias de todo o tipo: de passadeiras a licras de surf, ou uma capa de telemóvel para se treinar o ponto da renda enquanto se espera o barco para as Berlengas.
No ano seguinte repetiram a chamada. Nessa altura, Joana Sousa e Beatriz Barros, que estavam no final do primeiro ano do curso de Design de Produto - Cerâmica e Vidro, passaram as férias de Verão a matutar no que fazer com as rendas. Pensaram em biquínis e cestos para bicicletas, mas lembraram-se que o que vinha mesmo a calhar era adoçar o bico a turistas (e aos da terra).
“Queríamos uma receita que fosse original e se distanciasse dos restantes doces tradicionais”, diz Beatriz Barros ao PÚBLICO. E que tivesse dentro o mar. Foi daí que surgiu a ideia de incorporar no novo doce as algas que existem em Peniche. A partir daí, as duas jovens, que hoje estão já a terminar a licenciatura, começaram a pensar na forma que dariam à "Renda Doce de Peniche".
A responsabilidade de criar a receita e os sabores da massa passaram depois para a Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar do Politécnico de Leiria. O Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE - IP Leiria) tratou das algas. E associaram-se depois à Pastelaria Calé para que o produto pudesse ser comercializado.
“As algas têm benefícios para a saúde e têm entrado a pouco e pouco na alimentação dos portugueses”, diz Susana Mendes, professora no pólo de Peniche. Podem ter antioxidantes, alto teor de fibras ou ácido fólico. As macroalgas utilizadas nas bolachas são produzidas numa aquacultura sustentável pela única empresa do país que produz algas em sistema aberto, a Algaplus, sediada em Ílhavo. Deste modo, garante-se a sustentabilidade do produto sem depender da sazonalidade das algas, explica a docente.
"Isto come-se?"
A receita final das bolachas ficou pronta em Abril. Testaram-se vários sabores, até chegar aos três finais. Depois houve uma sessão de degustação em que a população de Peniche pôde escolher os sabores preferidos: caramelo com flor de sal, lima e gengibre.
Na cozinha da pastelaria, em Peniche, a massa faz-se de açúcar, ovos, farinha, manteiga, algas, pasta de caramelo ou lima ou gengibre, consoante o sabor que se pretende. Diana e Rute, funcionárias da Calé, passam-na pelo laminador. À medida que a massa é estendida notam-se os finos fios das macroalgas que ali chegam secas e com muito cheiro a mar.
O segredo da receita é mesmo a delicada cobertura açucarada, branca imaculada, como se de uma renda se tratasse. Ali não se mexem nos bilros de madeira (peças onde está enrolado o fio) para que os fios brancos se entrelacem como manda o pique, onde os alfinetes marcam o desenho que se quer fazer nascer. Sabe-se apenas que o glacé (cobertura para doces feito à base de açúcar e claras) é colocado em moldes para ficar com aspecto de renda.
“Foi muito difícil chegar ao ponto”, assume o pasteleiro. Caso o glacé não esteja no ponto, é o suficiente para as “rendas” não saírem do molde, acabando por haver bastante desperdício. As rendas são depois “coladas” às bolachas, com uma espécie de calda de açúcar.
Mal abrem a caixinha das bolachas (que foi também desenvolvida por uma aluna, Rita Veiga, da escola de design), é comum os clientes perguntarem-lhe se aquela cobertura, que replica a textura dos fios da renda, se pode comer e que é uma pena "destruir" à dentada um trabalho tão artesanal.
Todos os dias há bolachas na montra das pastelarias em Peniche e nas Caldas da Rainha. Por semana, Luís Calé estima que sejam vendidas à volta de 200 caixas. Cada uma leva 12 bolachas – quatro de cada sabor – e custa sete euros. As vendas, admite Luís, têm "superado as expectativas". "Há dias em que não conseguimos responder [a todos os pedidos]", diz.
A Renda Doce de Peniche não é a primeira parceria do Politécnico de Leiria com o Grupo Calé. Têm já a andar alguns projectos de investigação que incorporam macroalgas marinhas em alimentos tradicionais, como é o caso do pão de algas, que não leva qualquer tipo de sal.