O “vício” dos cromos da bola alimenta cadernetas e álbuns de memórias
As competições internacionais de futebol, como o Mundial da Rússia, acordam a febre dos cromos e das cadernetas. Há quem se estreie, mas são muitos os que coleccionam desde a infância e outros que passam o “vício” para os mais novos.
O pai abria a porta de casa e nunca se sabia se era dia de jogo ou não. Distribuía aqueles presentes por diferentes partes da casa. Umas vezes, pela cozinha; outras, pelo móvel da sala. Tudo sem aviso prévio e, por isso, sempre uma surpresa. “Está tudo à vista”, dizia-lhe. Por vezes, os presentes podiam ser repetidos, mas também havia quem os trocasse por outros que ainda não fizessem parte da colecção. As prendas espontâneas do pai eram os cromos da bola que Pedro Teixeira da Mota coleccionava, uma memória da infância do comediante de 24 anos, que há dias apresentou, em Lisboa, o último Impasse — espectáculo sobre o qual falou com o P3 em 2017.
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O pai abria a porta de casa e nunca se sabia se era dia de jogo ou não. Distribuía aqueles presentes por diferentes partes da casa. Umas vezes, pela cozinha; outras, pelo móvel da sala. Tudo sem aviso prévio e, por isso, sempre uma surpresa. “Está tudo à vista”, dizia-lhe. Por vezes, os presentes podiam ser repetidos, mas também havia quem os trocasse por outros que ainda não fizessem parte da colecção. As prendas espontâneas do pai eram os cromos da bola que Pedro Teixeira da Mota coleccionava, uma memória da infância do comediante de 24 anos, que há dias apresentou, em Lisboa, o último Impasse — espectáculo sobre o qual falou com o P3 em 2017.
A nostalgia que essas lembranças carregam foi, por si só, suficiente para Pedro voltar a coleccionar. Ser ano de campeonato do mundo de futebol também o impulsionou, porque, como diz, “quanto maior a competição, maior o sentimento”. Repara que “a mística se perde” quando já não existe a “caça aos cromos em casa”. Para além disso, agora, é com o recheio da própria carteira que preenche a caderneta, um “investimento” que, com o passar dos anos, é maior — mas ganha outro encanto em competições internacionais.
Encontrar cromos e cadernetas na Rússia, onde está a decorrer o Mundial 2018, também pode ser uma tarefa complicada. Guilherme Silva, 25 anos, de Alijó, Vila Real, viajou para Moscovo para ver o jogo de Portugal contra Marrocos — e também para presenciar o espírito que, por estes dias, se espalha pela capital russa. Pelos quiosques da cidade, diz não ter encontrado nada para a sua colecção, iniciada há já 20 anos. “Quando vou a Mirandela, por exemplo, compro lá cromos. É uma tradição, compro cromos noutras cidades que visito desde pequeno”, conta. A caderneta do Campeonato Nacional de 1998 é “das mais antigas” que tem, mas hoje só se dedica às competições internacionais. Para o estudante, “apegado a estas coisas”, seria muito difícil vender alguma caderneta porque cada uma delas está carregada de memórias. Como, por exemplo, aquela vez em que, já na universidade, gastou a semanada toda em cromos.
Emanuel Meira Rego, 28 anos, traduz as palavras em números: “Cada caderneta custa à volta de 300 euros, tendo em conta o número de cromos que cada uma apresenta, que pode variar entre os 250 e os 400.” Hoje, cada saqueta da Panini, nome maior no mercado dos cromos, custa 90 cêntimos, um aumento que gera algum desagrado entre os coleccionadores. Acaba por ser barato? “Não, mas é como se fumasse. É um vício”, explica ao P3. No seu caso, também é quase hereditário: o pai já o faz desde os dez. O quase meio século de coleccionismo traduz-se em inúmeras cadernetas, algumas delas em conjunto com o filho, que há oito anos decidiu continuar a tradição a título individual.
Em Braga, domingo é dia de trocas
Esse “trajecto”, iniciado por Emanuel durante a formação na Universidade do Minho, em Braga, levou-o a descobrir o "Santo Graal da troca de cromos" na cidade minhota. É que parte “da piada” desta modalidade do coleccionismo está na possibilidade de encontrar o cromo que faltava nas mãos de alguém que nunca se viu na vida. E que depois se torna um companheiro da caça semanal aos cromos. É o que acontece no quiosque do Tó Nel, situado entre o Complexo Desportivo da Rodovia e o edifício do Laboratório Ibérico de Nanotecnologia, bem perto da universidade.
É lá que se vê António Fernandes, 52 anos, também ele adepto de cromos de todos os feitios. Passou essa responsabilidade para os filhos, de 17 e 13 anos, já que o dia no quiosque começa às 9 horas. O toldo vermelho, quase como uma extensão do amarelo que pinta o quiosque e que o faz sobressair, ao longe, abriga as dezenas de pessoas que, nas manhãs de domingo, ali chegam com cromos numa mão e uma lista na outra. Há estacionamento a escassos metros, sombra e “uma comunidade que se entreajuda”. Reúnem-se à volta das poucas mesas que existem e acotovelam-se sobre a arca dos gelados.
É como se fosse um negócio, com linguagem quase codificada. “Preciso do 472 Suécia”, ouve-se uma vez, duas e três. Ninguém o tem. Acontece o mesmo com o cromo número três, com um número igual de crianças à sua procura. Se não são as crianças, são os pais e as mães que as trazem pelo braço. Nunca se sabe, realmente, quem está mais empenhado na tarefa domingueira. “Às vezes, o vício passa dos mais novos para os mais velhos”, conta o proprietário do quiosque. Mas o mais comum é a passagem do testemunho. Apesar disso, não vê o negócio esmorecer: a primeira encomenda que fez este ano, pouco antes do pontapé de partida do Campeonato do Mundo, “foi de 50 caixas, cada uma com 100 cromos”. Acrescenta que pode chegar a vender “quase 15 caixas por dia, principalmente no início da competição”, ainda que, agora, “os números tenham baixado”.
Cristina Abreu, de 40 anos, e o marido são de Joane, Vila Nova de Famalicão. A paragem no Tó Nel é obrigatória a cada duas semanas. Não é que o ponto de encontro para coleccionadores fique perto de casa, mas esta é uma maneira de “recompensar" o filho, João Afonso, “pelas excelentes notas”. Aos 12 anos, também segue os costumes passados pelo pai, que já contagiaram a pequena Maria, de oito anos. O irmão está mais empenhado, mas Maria também está atenta ao rebuliço que ali se instala durante algumas horas. O esforço é conjunto, já que a caderneta é dos dois.
Ao centro da arca dos gelados encontram-se Paulo e Carolina Araújo, pai e filha, de 42 e 12 anos, respectivamente. A história repete-se: o mais velho já coleccionava, a mais nova ganhou-lhe o gosto e segue as pisadas pela primeira vez. Paulo negoceia, Carolina aponta na ficha, quase completa, sombreada pelo marcador rosa. São de Braga e dizem que, caso não existisse o quiosque, “a brincadeira saía muito mais cara”.
Cromos sem fronteiras
A maior parte vem das redondezas, mas António Fernandes garante que ali pára “gente da Figueira da Foz, de Aveiro e do Porto”. Lembra-se ainda de “um senhor” que viaja de Viseu para trocar os seus cromos, os dos amigos e dos familiares. O mesmo acontece com Emanuel Meira Rego, que ali já trocou “muitos cromos”. Por vezes, sai de Vila Praia de Âncora, Caminha, onde vive e trabalha, e conduz até ao quiosque amarelo. Tó Nel pode já nem se lembrar de nomes, mas afirma ter visto “muitos miúdos a crescer” que, ao logo dos anos, ali se entretinham nas trocas e negociatas desta “arte”, como lhe chama. Ali não há espaço para vendas entre coleccionadores e quem o faz não é bem recebido. A atitude de cooperação pauta as horas gastas debaixo do toldo vermelho, mas também em sítios como a Praça de D. João I, no Porto, onde a mesma tradição acontece nas manhãs de domingo. O companheirismo atravessa a fronteira do mundo real para o virtual, onde existem fóruns e grupos dedicados à troca de cromos, como o Trocar Cromos – Panini, com mais de 1300 membros.
As burlas podem acontecer e há casos denunciados nesses grupos do Facebook. No entanto, e apesar da desconfiança que ainda existe sobre trocas pela Internet, há casos felizes. Emanuel já chegou a receber “cromos a mais” em relação aos que pediu. Para além disso, também há quem percorra distâncias “consideráveis” para conseguir um cromo ou uma caderneta, como Hugo Silva, 41 anos, treinador de futebol há 15. Um dia, “já bem depois da meia-noite”, encontrou um anúncio de uma caderneta no Facebook. “Entrei logo em contacto com o anunciante e na manhã seguinte fui buscá-la porque era uma oportunidade incrível”, explica.
Não é qualquer coleccionador que o faz, mas Hugo terá uma das maiores colecções de cadernetas e cromos em Portugal. Está tudo no livro Por falar em cromos…, uma compilação sobre futebol que se estende de 1934 a 2016. “Foi um projecto feito para mim, porque tinha tudo apontado em documentos no computador. Mas o que dava mesmo jeito era ter tudo catalogado e isso resultou numa grande pesquisa e trabalheira enorme”, recorda, apontando que o livro serve de “enciclopédia para quem está a começar e até para quem já o faz há muito tempo”. Ao P3, o treinador e coleccionador de cromos de futebol afirma que este é um caminho sem final anunciado, uma vez que “há sempre coisas novas todos os anos”, para além “daqueles cromos que serão muito difíceis de encontrar, como os dos anos 30 e 40”.
As décadas fogem-lhe pelas mãos, mas o coleccionador acredita que esta é uma prática “que se estende a todas as gerações”. Ao mesmo tempo que se cola, cuidadosamente, o cromo no espaço reservado, há recordações a serem construídas, como se de álbum se tratasse.