Jovem agredida por fiscal: “Pôs-me os joelhos em cima, como se fosse um troféu”

Jovem de 21 anos queixa-se de agressão na noite de São João, no Porto, por um fiscal que estava a trabalhar na STCP. “Aqui não entras, preta de merda!” foi uma das várias expressões que diz ter ouvido. A rapariga ficou com traumatismo facial depois dos socos. E acusa a PSP de não a ter ouvido no local.

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O rosto está inchado, cheio de manchas de sangue, e os lábios deformados. O relatório médico do Hospital de Santo António, no Porto, diz que ficou com traumatismo facial. “A parte mais afectada foi o lado esquerdo”, conta ao PÚBLICO Nicol Quinayas, jovem que acusa o fiscal da empresa de segurança 2045 de a ter agredido “barbaramente”.

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O rosto está inchado, cheio de manchas de sangue, e os lábios deformados. O relatório médico do Hospital de Santo António, no Porto, diz que ficou com traumatismo facial. “A parte mais afectada foi o lado esquerdo”, conta ao PÚBLICO Nicol Quinayas, jovem que acusa o fiscal da empresa de segurança 2045 de a ter agredido “barbaramente”.

Na madrugada de 24 de Junho, depois das festas de São João, Nicol Quinayas estava na paragem de autocarro do Bolhão, no Porto. Um funcionário da 2045 — que faz a fiscalização dos autocarros da STCP (Sociedade de Transportes Colectivos do Porto) — tem o logótipo da empresa no braço e é visto, em pelo menos um vídeo que foi posto a circular na Internet, a torcer os braços à jovem, em cima dela. À volta ouvem-se algumas pessoas a gritar: “O que é isto? Gostavas que fosse com a tua filha? Isto vai tudo para a polícia!”

Ela, Nicol, de 21 anos de idade, com nacionalidade colombiana mas a viver em Portugal desde os cinco, mede 1,59 metros e pesa 55 quilos. “Sou um franguinho”, diz. O segurança/fiscal deve ter o dobro da estatura. Por enquanto, o trabalhador está suspenso de funções, até que se conclua o processo de averiguação interna, disse a STCP, que subcontrata a empresa 2045. A 2045 não respondeu a nenhuma das perguntas enviadas pelo PÚBLICO, tendo referido apenas que está a averiguar internamente o que aconteceu e que entre os três mil funcionários há profissionais “de várias etnias sem qualquer tipo de discriminação de nacionalidade, religião, raça ou género”.

A PSP, que foi chamada ao local naquela madrugada, recebeu queixa-crime e o processo seguirá para o Ministério Público — ainda não há informação sobre se a queixa deu entrada, segundo o gabinete da Procuradoria-Geral da República.

Nicol e as amigas Daniela e Tânia, que presenciaram o que aconteceu, contaram que quando a PSP chegou ao local deu atenção apenas ao segurança/fiscal, que estava a fumar um cigarro depois da ocorrência. A Nicol ninguém da PSP pediu identificação. Dizem ainda que nenhum dos outros fiscais da 2045 as ajudou, mesmo depois de terem sido feitos pedidos para tal. Aliás, durante as agressões, segundo relatam, ninguém foi agarrar o homem e impedir que continuasse a agredir Nicol. Ela não culpa as pessoas, acha que foi porque tiveram medo: “Ele estava fardado, impõe respeito.”

Segundo descreve, depois de lhe ter dado dois socos, o fiscal ficou em cima dela “durante imenso tempo”. “Eu abria a boca a tentar gritar e não me saía nada. Vejo as sapatilhas, uma miúda agacha-se e pergunta o que eu preciso. Eu digo: ‘Diz para ele parar.’ Porque, quanto mais me mexia, mais ele me torcia o braço. Depois de me bater veio para cima de mim com os joelhos, como se eu fosse um troféu.”

Nenhuma das testemunhas com quem o PÚBLICO falou tem dúvidas de que se tratou de um acto de racismo. Daniela, uma das duas amigas que estavam com Nicol Quinayas, afirma: “A mim, que sou branca, deixou-me entrar no autocarro, a ela e à Tânia, que são de cor, disse: ‘Pretas, vão apanhar o autocarro para a vossa terra!’.” Nicol Quinayas conta também que, a dada altura, uma testemunha ouviu o segurança gritar: “Estes pretos não aprendem!...”

“Tu aqui não entras, preta de merda”

Tudo começou na fila da paragem de autocarro 800, no Bolhão. Esta é a versão das jovens. Passavam das 5h e Nicol tinha chegado depois das amigas, que já ali estavam, quando umas senhoras levantaram a questão de Nicol estar a passar à frente. Ela respondeu: “Foi porque as minhas colegas estavam aqui, mas se quiser vou lá para trás.” Responderam-lhe: “Deixe estar.” E assim foi. Daniela contextualiza: “Não havia fila formada, as pessoas estavam ali espalhadas.”

As portas do autocarro abriram e Nicol entrou. Mas um homem “aproximou-se muito” dela e disse: “À minha frente não passas.” Daniela conta que interferiu e explicou o que se passava; o homem respondeu: “Não têm nada que estar aqui, pessoas como vocês só arranjam confusão.” Nicol deu-lhe “um chega para lá” com a mão, respondeu “não tem por que se chatear”. “É verdade que se eu tivesse dito que ele tinha razão, nada disto teria acontecido. Mas eu ando todos os dias de autocarro, todos os dias acontecem cenas destas e nunca aconteceu nada desta dimensão.”

Foi nesta altura que entrou em cena o segurança/fiscal, que começou a puxar-lhe o braço e a separar a discussão, tomando imediatamente partido do homem, dizendo: “Aqui não entras!”

Nicol respondeu que tinha que ir trabalhar no dia seguinte, que estava cansada. “‘Se for preciso, vou para trás da fila’. Mas dou por mim e estou fora do autocarro. A Daniela puxava-me de um braço e ele do outro. Olho, e vejo os olhos dele arregalados, fora de si, por nada! Disse-lhe: ‘Você acalme-se, não devia estar aqui de serviço.’ Começou a dar-me socos, não sei quantos foram, sinceramente.” Entretanto, o homem gritava, conta ainda: “‘Tu aqui não entras, preta de merda! Não chegas e passas à frente de toda a gente. Vai apanhar o autocarro na tua terra!’”

A outra amiga, Tânia, contou, por outro lado, que foi levada “para o fim da fila”, reclamou e voltou para junto das amigas. O segurança disse: “Não me ouviste a falar para ti, preta de merda?” A jovem recorda, nervosa, que poderá não ter respondido da forma mais correcta: “Para mim não fala assim, senão vou-me passar”. Nicol chamou ao fiscal “burro e otário”. Depois, tentaram entrar à força no autocarro, e o fiscal terá empurrado ambas, que caíram no chão. “Ele imobilizou-a, e ela [Nicol] tentou empurrá-lo, mas o segurança deu-lhe logo um soco. Mal vi aquilo, tentei partir para cima dele”, explica, acrescentando que, depois, também foi agredida.

Nicol confessa que se tentou defender com pontapés e empurrões, chamou-lhe “filho da puta”. Diz que ele a agarrava, batia-lhe com a cabeça no chão e deu-lhe dois socos. Formou-se uma espécie de roda de pessoas à volta dos dois. Tânia explica que “a partir do momento em que as pessoas começaram a filmar, o segurança calou-se”. Daniela, quando chegou perto da roda onde estava toda a gente a olhar para a agressão, percebeu que havia sangue. “A partir daí, entrei em choque. Comecei a gritar e a chorar”, conta.

“Só quero é ir para casa”

Quando finalmente se conseguiu levantar, explica Nicol, conseguiu ver a multidão a olhar para ela, gente de boca aberta, gente a chorar. “Só quero é ir para casa”, disse. Mas Daniela aconselhou: “Vais fazer queixa.” Tânia tentou ligar à polícia, mas com a amiga caída no chão e depois do aparato, não conseguiu. A chamada foi feita por “outra rapariga que estava no local”, relata. Critica ainda a PSP por, no local, não se ter disponibilizado para chamar uma ambulância, tendo a chamada sido realizada pela própria.

Também Nicol se queixa de, já no local, os três polícias não terem tirado os capacetes, não lhes terem dado atenção, nem sequer lhes pediram os dados, mandando-a calar. A dada altura, Nicol perguntou-lhes: “Não sei o que estou aqui a fazer.” Ao que lhe responderam: “Se tem pressa pode ir andando...”

Nicol fez queixa à PSP no dia a seguir, depois das 20h, onde foi atendida por dois polícias “a sério”. A advogada, Paula Moreira, fez uma exposição dos factos à PSP, à SCTP e à Autoridade de Segurança Nacional. “É nítido que esta agressão foi de ódio racial. Ela foi barbaramente agredida. É uma miúda. Se lhe prendesse um braço apenas, ela não se mexia”, comenta ao PÚBLICO, dizendo que não tem dúvidas de que se tratou de racismo. “Toda a gente teve medo. Ninguém se meteu.”   

Entretanto, a organização SOS Racismo emitiu um comunicado apontando o acto como “mais um exemplo de discriminação racista e xenófoba em Portugal”. Diz ainda que o “caso é agravado pelo facto de o agressor se encontrar ao serviço de uma empresa pública, e por a actuação da Polícia de Segurança Pública, chamada ao local, ter, aparentemente, pecado por escassa”.

O SOS Racismo exige que a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) “faça uma tomada de posição pública”, bem como as empresas envolvidas, a STCP e a empresa de segurança privada 2045. A CICDR ainda não respondeu ao PÚBLICO sobre se já tem conhecimento formal do episódio.

Também a Direcção Nacional da PSP ainda não respondeu às questões enviadas pelo PÚBLICO sobre as queixas de não-assistência no local. Com Nuno Gomes