Haja esperança na Saúde
Estas são medidas de fundo, difíceis mas necessárias. O pretexto de uma nova lei não as pode adiar.
Os que como eu pensavam que a discussão sobre uma nova lei de bases para a Saúde seria um debate estéril e desnecessário enganaram-se redondamente. O debate tem sido vivo, substantivo e vai perdurar. A razão está no real declínio do SNS tal como o conhecemos e vivemos desde os anos setenta até ao final da década passada.
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Os que como eu pensavam que a discussão sobre uma nova lei de bases para a Saúde seria um debate estéril e desnecessário enganaram-se redondamente. O debate tem sido vivo, substantivo e vai perdurar. A razão está no real declínio do SNS tal como o conhecemos e vivemos desde os anos setenta até ao final da década passada.
Nos oito anos desta década apareceram ou acentuaram-se problemas que o atual modelo não parece ter condições para solucionar. Problemas estruturais que se julgavam ultrapassáveis, problemas conjunturais que agravaram de forma crítica os primeiros.
Vamos aos primeiros: (a) o SNS foi insuficiente desde o início, careceu de privados, sobretudo para meios de diagnóstico e novas tecnologias que o escasso investimento público demorava a adotar; o que hoje é novo é o surgimento de oferta privada para colmatar necessidades que o SNS no passado solucionava de forma aceitável: urgências, consultas de especialidade e internamentos; (b) a Saúde esqueceu-se da ADSE, com a explicação de ela ser um subsetor dos funcionários e depender por quase meio século das Finanças; a ADSE deixou de pagar ao SNS os medicamentos e depois aos hospitais, isto é, ficou com excedentes que passou a utilizar na aquisição de serviços convencionados à medicina liberal e à crescente hospitalização privada; quando a ADSE passou a ser essencial para o equilíbrio financeiro do privado, foi entregue à Saúde, que não sabe o que fazer dela; (c) o SNS ou quem o gere nunca tiveram coragem para criar um sistema de exclusividade, o único esforço registado, de Leonor Beleza, pela rigidez tradicional das Finanças, acabou no paradoxo de os menos motivados pedirem os tais 30% da exclusividade, os mais ativos não a utilizando; com a degradação das retribuições na crise, o duplo corte nas horas extra e o envelhecimento da geração de setenta, deu-se a debandada, os mais novos para o estrangeiro, os mais ativos para os grandes grupos privados, os mais velhos para a reforma; (d) finalmente, a escassez de recursos para investimento conduziu os governos às parcerias (PPP), o que permitiu construir a crédito Cascais, Braga, Loures e Vila Franca de Xira, em troca da gestão por nove anos. Ao contrário do que se diz, estas parcerias funcionaram bem, com rigor e eficiência, garantindo cobertura universal de qualidade; o problema está em que elas robusteceram os grupos privados, menos por serem um bom negócio, mais por facultarem volantes de tesouraria em alturas de rarefação do crédito.
Entretanto, o contexto foi agravado por várias razões conjunturais: (a) a crise do ajustamento, eficaz nos cortes de gordura e depois de músculo, hoje renovada de forma ambígua, acolhendo mais pessoal a trabalhar em menos horas, o que significa perdas líquidas de produtividade que depressa se transformam em insatisfação pública; (b) a ausência de ideias para lá da retórica da universalidade, da gratuitidade total, do dispêndio virtuoso e das homenagens aos pais fundadores; (c) o regresso à pistonnage política na escolha dos gestores a nível local ou institucional; (d) o risco de uma postura defensiva de um SNS que se deteriora lentamente, face a um setor privado que ano após ano se reforça; (e) a gestão comunicacional que as oposições ao SNS adotam (sim, há oposições, embora disfarçadas), considerando-o a melhor coisa do mundo, a ser destruída pela inépcia e subfinanciamento dos atuais mandatários, unindo os aproveitadores a reivindicarem mais alimento, ou seja, mais dinheiro; (f) a guerra larvar que opõe Finanças e Saúde, com razões para ambos os lados, as Finanças desconfiando da má gestão, a Saúde recusando uma tutela invasiva e despersonalizante.
Então que fazer? Nada de melhor que uma nova lei para nos ocupar os espíritos e dissipar energias. Discussão estratosférica? Certamente. O País continuaria a viver bem sem uma nova lei da saúde? Certamente. Mas como adoramos fazer leis e odiamos quem as execute, quem reforme o que está mal e promova o bem, uma nova lei agrada a todos. Não prejudica interesses, a não ser no longo prazo; adia reformas imediatas, satisfazendo os beneficiários da atual anomia; permite a explanação da retórica sobre a substância; ocupa espaço comunicacional evitando debates mais críticos. Entretanto o SNS continua na tábua descendente, os doentes a terem menos confiança, com sacrifício a tentarem o privado onde as amenidades abundam. A guerrilha parlamentar, hoje toda pré-eleitoral, pode ajudar alguns a desgastar outros e levar outros a enganar alguns.
Uma coisa é certa, ninguém pode recusar o debate a partir de agora. Todos baterão no peito a homenagear Arnaut e a cantar hossanas ao SNS. Desconfie-se dos mais barulhentos. Como as carpideiras, serão os mais vorazes e os primeiros a trair ou a gritar por não se ter ido até ao fim, apesar de saberem que nesta matéria não há fim, apenas meio. Está tudo mais embrulhado. Se queremos construir os novos hospitais de Lisboa, Seixal, Évora e Algarve, só lá iremos com PPP, ao menos para o investimento; se anulamos as taxas moderadoras veremos os serviços submersos por procura desnecessária ou pelo menos adiável; se proibirmos os hospitais de recorrer a pessoal e a meios de diagnóstico privados deterioramos a sua resolutividade, alongando listas de espera e erguendo múltiplos calvários para quem não os merecia; se não criarmos uma forma de pagar ao pessoal por desempenho não alcançaremos a desejada exclusividade, nivelaremos por baixo e promoveremos a saída dos melhores para o privado; se não responsabilizarmos as gestões premiando as boas e expulsando as más, gastaremos muito mais que o necessário. Estas são medidas de fundo, difíceis mas necessárias. O pretexto de lei nova não as pode adiar.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico