O passado de Portugal e os advogados do diabo
Os povos evocam e celebram os seus feitos, não os seus defeitos. As memórias não gostam de advogados do diabo.
O debate sobre o futuro Museu dos Descobrimentos (seja ou não essa a sua designação final) e o 10 de Junho trouxeram de novo à tona, de forma mais ou menos explícita, a relação de cada um de nós com o passado de Portugal. Há aqueles que não têm tabus nem pedras no sapato relativamente a esse passado, e há os que, pelo contrário, olham para ele — ou, melhor, para parte dele — com vergonha e vocação penitente, exigindo dos actuais governantes actos de contrição públicos por antigas injustiças ou violências.
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O debate sobre o futuro Museu dos Descobrimentos (seja ou não essa a sua designação final) e o 10 de Junho trouxeram de novo à tona, de forma mais ou menos explícita, a relação de cada um de nós com o passado de Portugal. Há aqueles que não têm tabus nem pedras no sapato relativamente a esse passado, e há os que, pelo contrário, olham para ele — ou, melhor, para parte dele — com vergonha e vocação penitente, exigindo dos actuais governantes actos de contrição públicos por antigas injustiças ou violências.
Entre estes há, até, quem pense que se os portugueses não estiverem dispostos a pedir perdão pelas partes negativas ou sombrias do seu passado como povo, então também não poderão orgulhar-se das partes positivas ou heróicas desse mesmo passado. O antropólogo Miguel Vale de Almeida foi a primeira pessoa a quem ouvi explanar essa teoria. Fê-lo numa entrevista no Canal Q e para dar suporte à sua tese de que Portugal deve pedir desculpa pelo seu antigo envolvimento no tráfico negreiro e na escravização de africanos. Mas Vale de Almeida está longe de ser uma voz isolada. Há várias outras pessoas que, no âmbito do debate sobre o Museu dos Descobrimentos ou no da evocação do 10 de Junho, afirmam, por essas ou outras palavras, que não podem celebrar-se as façanhas dos heróis se, por outro lado, não se assumirem as iniquidades e malfeitorias dos vilões. O exemplo mais recente é o de Catarina Martins. A deputada e coordenadora do BE gostaria que no 10 de Junho os discursos oficiais reconhecessem — e cito, de um tweet seu — “a enorme violência da expansão portuguesa, a nossa história esclavagista, a responsabilidade no tráfico transatlântico de escravos”. Portugal estaria, nessa óptica, inibido de louvar o que quer que fosse no seu passado sem simultaneamente se purgar e absolver de tudo o que aí houvesse de censurável. Ou seja, e para voltar ao exemplo de Miguel Vale de Almeida, o país que não pede perdão pela antiga escravatura também não pode gabar os feitos dos descobridores.
Mas não é assim. Apesar de parecer irrepreensivelmente lógico e razoável, este raciocínio está errado porque assenta numa persistente confusão entre História e memória, e atribui à primeira características que são da segunda — e vice-versa. Culpar e desculpar, condenar e absolver, elogiar e denegrir, e assim sucessivamente, são tendências e práticas das memórias, não da História (nem, sublinhe-se, dos museus). Já referi em anterior artigo que, ao contrário do que vulgarmente se pensa, memória e História são coisas diferentes. As memórias são visões parcelares, emotivas e muitas vezes tendenciosas do passado, visões que procuram mitificar certos aspectos e apagar outros, que não agradam ou não convêm a quem as conserva, invoca e perpetua. As memórias podem distorcer as realidades passadas e geralmente omitem boa parte dessas realidades.
É estranho que essas distorções e omissões aconteçam? É lamentável, sem dúvida, mas não é estranho. As memórias funcionam mesmo assim. Ficam-se muitas vezes pelas meias-verdades ou caem na pura ficção. O campo da verdade e do rigor é o campo da História. É ela que, sendo séria e sólida, está obrigada a mostrar-nos as duas faces de todas as moedas, porque, ao contrário da memória, a História é crítica, é global e tenta ser equilibrada e imparcial. É a História (e não a memória) que reúne e analisa as recordações das pessoas, que as compara entre si, que as confronta com documentos e outros registos do que aconteceu, e que explicita e interpreta os factos. Quer isto dizer que, se permanecerem na esfera da memória, como, aliás, geralmente acontece, os portugueses podem, por surpreendente que possa parecer às Catarinas Martins deste mundo, continuar a orgulhar-se de muitas páginas do seu passado mesmo que o seu país não se penitencie por outras páginas, mais tristes ou lamentáveis. Podem, como qualquer outro povo à superfície da Terra — repito: como qualquer outro povo à superfície da Terra —, enaltecer os triunfos e desvalorizar as derrotas e as vergonhas. Podem celebrar os seus maiores e desprezar ou ignorar os seus facínoras. Elogiar, como Camões, um “Castro forte e outros em quem poder não teve a morte” e calar a referência às páginas e às figuras negras e vis, o que não quer dizer que ignorem que elas estão lá e que “também dos portugueses alguns traidores houve algumas vezes”. Os povos evocam e celebram os seus feitos, não os seus defeitos. As memórias não gostam de advogados do diabo.
As coisas seriam naturalmente diferentes se o discurso quotidiano e as práticas celebratórias dos portugueses se fizessem, como seria mais desejável, no estrito campo da História, que é rigorosa e tudo analisa e pondera. A História é conhecimento obtido através de documentos e por isso, no seu campo, as coisas fiam mais fino e são muito mais isentas. Quererá isto dizer que Miguel Vale de Almeida et al. têm, em última instância, razão quando nos dizem que não podemos orgulhar-nos das partes boas do passado sem pedir desculpa pelas más? Quererá dizer que escreveram direito por linhas tortas? Não, porque a História não é feita para determinar culpas nem para tecer loas — essas são tendências da memória. A História é feita para saber o que aconteceu e como, quando e por que razão aconteceu. Não é feita para condenar nem para absolver, é feita para explicitar e é bom que continue a ser o que sempre foi.
Esta minha advertência, ou manifestação de vontade, justifica-se, face ao que por aí se vai lendo, e tem óbvios destinatários. Não me refiro apenas às muitas pessoas que, quando falam do passado, oscilam constantemente entre o registo aproximativo e tendencioso das memórias e o registo exacto, exigente e documentado da História, o que baralha os argumentos e confunde tudo e todos (e muitas das polémicas sobre escravatura e Descobrimentos radicam justamente nessa confusão entre memória e História). Refiro-me também, e sobretudo, aos que querem misturar História e ideologia. No ano transacto, o passado de Portugal, em particular o seu passado colonial, foi fortemente atacado por activistas políticos (académicos e não-académicos) e vai continuar a sê-lo em 2018 e nos anos seguintes. Há tempos uma das pessoas a que me refiro, a socióloga Marta Araújo, apontou claramente os objectivos prioritários da agenda dos auto-intitulados activistas anti-racismo, entre os quais a socióloga se inclui. Um desses objectivos é, nas suas palavras, “tocar (sic) na história”, visto ela ser, em sua opinião, “o maior reduto das forças conservadoras do país”. Se percebi bem, Marta Araújo advoga que se mexa no conhecimento do passado ao sabor das suas avaliações subjectivas e dos seus interesses políticos. Aparentemente, esqueceu-se de que a História é (ou pelo menos, deve ser) independente de agendas políticas e de advocacias, por mais justas que sejam, e que o seu único compromisso é para com a verdade.