Lixo? Não, este “gene saltitante” é decisivo para o embrião
Estudo em ratinhos, liderado por investigador português nos EUA, mostrou que o transposão mais comum no nosso genoma, o LINE1, é fundamental para as primeiras fases do desenvolvimento embrionário
Os transposões são conhecidos como “genes saltitantes” por serem capazes de sair das suas posições nos cromossomas e mudar para outro lugar na cadeia de ADN. Apesar de representaram cerca de metade do nosso genoma, são vistos apenas como lixo ou parasitas que podem causar mutações. Agora, uma equipa de cientistas nos EUA liderada pelo português Miguel Ramalho Santos descobriu que um dos genes saltitantes mais comuns tem, afinal, um papel decisivo no desenvolvimento embrionário. Sem o LINE1, os embriões dos ratinhos que fizeram parte da experiência no laboratório da Universidade da Califórnia, em São Francisco, não passaram da divisão em duas células. Ou seja, resumindo e simplificando, sem este gene saltitante não existíamos.
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Os transposões são conhecidos como “genes saltitantes” por serem capazes de sair das suas posições nos cromossomas e mudar para outro lugar na cadeia de ADN. Apesar de representaram cerca de metade do nosso genoma, são vistos apenas como lixo ou parasitas que podem causar mutações. Agora, uma equipa de cientistas nos EUA liderada pelo português Miguel Ramalho Santos descobriu que um dos genes saltitantes mais comuns tem, afinal, um papel decisivo no desenvolvimento embrionário. Sem o LINE1, os embriões dos ratinhos que fizeram parte da experiência no laboratório da Universidade da Califórnia, em São Francisco, não passaram da divisão em duas células. Ou seja, resumindo e simplificando, sem este gene saltitante não existíamos.
Se calhar, admite Miguel Ramalho Santos, temos “andado algo distraídos” no que diz respeito aos “genes saltitantes”. E a distracção já terá algumas décadas se tivermos em conta que Barbara McClintock, que descobriu os transposões nos anos 1940-50, quis chamar aos transposões “elementos controladores”, defendendo que teriam a capacidade de regular a actividade genética e o desenvolvimento. A proposta “não foi bem recebida e acabou por ser ignorada”, lembra o cientista português que agora conseguiu reparar a má fama dos “genes saltitantes”. “Este foi um daqueles ‘estudos-aventura’ em que somos motivados por curiosidade pura e não fazemos a mínima ideia à partida quais as descobertas a que acabaremos por chegar.” E eis que um novo mundo de possibilidades e “várias novas linhas de investigação fascinantes” se abriu.
A equipa liderada por Miguel Ramalho Santos publicou um artigo na revista Cell que vira de pernas para o ar o que se pensava sobre os transposões. “Apesar de os transposões representarem cerca de metade do nosso genoma, são geralmente vistos como parasitas nocivos que as células devem evitar a todo o custo”, começa por explicar ao PÚBLICO Miguel Ramalho Santos, adiantando que esta percepção deve-se muito ao facto destas sequências de ADN serem, em certos casos, “capazes de ‘saltar’ no genoma, isto é, de se inserirem em outros locais nos cromossomas e dessa maneira gerarem mutações”. “Neste trabalho mostramos que, pelo contrário, o transposão LINE1, que é o mais abundante no genoma, é essencial para o desenvolvimento embrionário pré-implantação”, diz o cientista. O que não é pouco, pois isto equivale a dizer, sublinha ainda Miguel Ramalho Santos, que “nós não existiríamos se não fosse esta função dos transposões durante o desenvolvimento”. Assim, em vez de criar confusões e induzir erros, este gene saltitante coordena a actividade de genes durante o desenvolvimento e impõe uma ordem que é essencial para a divisão celular.
Os cientistas revelaram que, longe de ser um parasita, o transposão mais comum, chamado LINE1, responsável por 24% do genoma humano, é realmente necessário para que os embriões se desenvolvam além do estágio de duas células. “O LINE1 está sempre lá no genoma sob a forma de ADN nos cromossomas. O que nós descobrimos é que isso não é suficiente: o LINE1 tem que ser activado, isto é, o seu ADN tem que ser transcrito em ARN [ácido ribonucleico], e sem esse ARN os embriões não passam da fase das duas células”, especifica Miguel Ramalho Santos.
Embriões a "brincar com o fogo"?
Uma das primeiras pistas que denunciou a importância do LINE1 surgiu quando os cientistas perceberam que este gene estava significativamente activo em embriões precoces. E se este transposão fosse, como muitos pensavam, um parasita perigoso, então era caso para dizer que “os embriões estavam a brincar com o fogo”. "Simplesmente não fazia sentido, e questionei o que poderia estar a acontecer”, refere Miguel Ramalho Santos no comunicado da Universidade da Califórnia sobre o estudo.
Era preciso investigar este aparente “paradoxo do LINE1” . "Por que razão deixávamos as nossas células produzirem muito desse RNA se era perigoso ou não fazia nada?", questiona Michelle Percharde, cientista da mesma universidade que também assina o artigo publicado na Cell. Tinha chegado o momento das experiências em laboratório e os ratinhos entraram em cena. Para determinar se os altos níveis do RNA do LINE1 em embriões de ratinhos eram realmente importantes para o desenvolvimento dos animais, experimentou-se eliminar este RNA de células estaminais. Descobriram que o padrão celular mudava e ficava semelhante ao que era observado nos embriões de duas células após a primeira divisão do óvulo fertilizado. A equipa de investigadores tentou então eliminar o LINE1 de óvulos fertilizados e “descobriu que os embriões perderam completamente a sua capacidade de passar da fase de duas células”. Esse foi o momento “Aha!”, lembram.
Outras experiências mostraram ainda que este gene saltitante forma uma espécie de aliança com proteínas de outros genes e que, juntos, têm a capacidade de “desactivar o programa genético que orquestra o estado de duas células dos embriões e de activar os genes que são necessários para o embrião prosseguir com novas divisões celulares e desenvolvimento”.
Depois de ignorado e até difamado durante décadas, o saltitante LINE1 passou de lixo a um gene essencial no desenvolvimento embrionário. E o resto? Será que os outros transposões no nosso genoma são, afinal, importantes para alguma coisa? "Esses genes são a maioria dos nossos genomas há centenas de milhões de anos", constata Miguel Ramalho Santos, que nota ainda que a maior parte da investigação da biologia celular se dedica aos genes que codificam proteínas e que são menos de 2% do genoma. O caso do LINE1 prova que há algo importante que nos pode estar a passar ao lado.