Entre quatro paredes de uma prisão, a poesia pode ser uma janela de fuga
No âmbito do Plano Municipal de leitura de Matosinhos, a escritora e poetisa Ana Luísa Amaral levou a palavra ao Estabelecimento Prisional Feminino de Santa Cruz do Bispo, de onde saiu com poesia oferecida pelas reclusas que a usam como atalho para a liberdade.
Que mais se pode esperar da clausura senão o desejo crescente de um reencontro com a liberdade. É da privação desta condição que se percebe mais de perto, na pele e na plenitude, o significado de uma promessa que é oferecida a toda humanidade no momento em que se respira o primeiro ar da vida. Tão simples e ao mesmo tempo longe da realidade. A liberdade não é um dado adquirido, é uma conquista que por vezes se alcança e noutras escapa-se. Numas vezes chegar a ela depende de nós, noutras não chega uma vida inteira para a alcançar.
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Que mais se pode esperar da clausura senão o desejo crescente de um reencontro com a liberdade. É da privação desta condição que se percebe mais de perto, na pele e na plenitude, o significado de uma promessa que é oferecida a toda humanidade no momento em que se respira o primeiro ar da vida. Tão simples e ao mesmo tempo longe da realidade. A liberdade não é um dado adquirido, é uma conquista que por vezes se alcança e noutras escapa-se. Numas vezes chegar a ela depende de nós, noutras não chega uma vida inteira para a alcançar.
Quando não existe, há forma, planos de fuga, escapes, ainda que temporários para lhe sentir o sabor. Seja a alma, o espírito, a mente ou o que se quiser chamar ao meio para que se saia dos limites, balizas e obstáculos que se põem entre o percurso sinuoso para a libertação de amarras físicas ou que a (falta de) razão levanta.
Que se furem esses obstáculos com a ajuda da criação. Talvez mais correcto seja usar o termo criatividade, ferramenta auxiliar para a organização desses tais planos de fuga que só a humanidade consegue gizar, por vezes tão facilmente como quando decide levantar barreiras.
Matéria-prima para o escape é a palavra, no topo das invenções do ser humano, pelas múltiplas facetas e significados que pode ter. Se o pensamento é a viagem mais imprevisível e que mais atalhos ou desvios desenha, a palavra será o combustível de encadeamento do raciocínio e o elo da ligação com as emoções.
Ana Luísa Amaral, escritora, poetisa, levou ao sector feminino do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo (EPSCB) a esperança, palavra que cujo significado está guardado num futuro que pode ou não acontecer. O mais importante será o percurso entre a distância até lá chegar. O trajecto será marcado pela convicção.
No âmbito do Plano Municipal de Leitura (PML) de Matosinhos, na semana passada, provou frente a uma plateia de cerca de 30 mulheres em reclusão que num universo em que muito do vocábulo se perde no vazio há força suficiente na poesia para que, de repente, em qualquer sítio, nos transportemos para outra realidade distante do espaço físico em que nos encontramos.
Uma tertúlia entre quatro paredes
Entre versos sobre ligações familiares, desejo, emoções ou trivialidades levou consigo três dezenas de espíritos livres, pelo menos naquele momento, para fora de quatro paredes longe de casa, do mundo, e do afecto dos mais próximos.
Estamos dentro de um espaço de reclusão, onde muitas das que lá estão não saem de lá há vários anos. Poucos minutos depois de lá chegarmos, sentimos que aquela tertúlia na biblioteca do EPSCB podia estar a acontecer noutro sítio qualquer.
Há interesse para ouvir a escritora. Escuta-se em silêncio, reage-se aos versos, há expressões que revelam identificação com o que está a ser dito. É com informalidade, mas sem descurar o peso das palavras e respeitando o que elas significam para cada uma das ouvintes, que se dizem os poemas da autora. Não interessa se a acção narrada é ficcional ou realidade. Interessa a mensagem. As emoções e os sentimentos, à data que foram passados para o papel, eram reais. Algumas daquelas mulheres passaram por experiências semelhantes.
Sofia, 27 anos, tem uma folha e uma caneta na mão. Aproveita uma pausa entre poemas, para não os cortar a meio, e pergunta-nos o nome da escritora. Não o fez por acaso. Já lá vamos.
Ana Luísa Amaral vai percorrendo algum do seu trabalho e abre-se em confissões que remetem para os eventos que deram origem aos poemas. Partilha esses momentos, descodifica a teia da semântica e expõe-se.
Foi lá para partilhar, mas também para uma troca. Haveria a curiosidade de saber se ali existiam colegas em potência. Pergunta se há quem escreva e se alguém quer partilhar algo que tenha escrito. Não foi difícil encontrar voluntárias.
Sofia não faz perguntas ao acaso. Havia um propósito na questão que nos tinha colocado anteriormente. É a primeira a tomar a iniciativa. Enquanto a autora dizia o trabalho de sua autoria, a jovem de 27 anos riscava uns versos no papel. Ali, literalmente em cima do joelho, fez um poema com destinatário. Escreve na primeira pessoa e na voz de Ana Luísa Amaral, duas perspectivas do mesmo evento. Arranca risos e palmas e a vontade da autora para conhecer mais material. Assina e oferece o poema em mão. Já o tinha feito ao presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quando há uns meses passou por lá. Diz-nos que não há ninguém que visite o EPSCB que saia de lá sem uma recordação sua.
Aberto o caminho, participam outras colegas. Cerca de meia dezena arrisca a tarefa de se fazer ouvir. Há quem comece e não consiga terminar. O peso das palavras não o permite.
A questão “aguda” da maternidade
Sofia lê diz mais um que uma guarda, a seu pedido, foi buscar à cela da aspirante a poetisa. A densidade do segundo faz desmoronar alguns rostos montados numa segurança que esconde fragilidades. Arranca lágrimas e emociona a sala com uma espécie de carta para os cinco filhos que deixou lá fora, a quem garante que a clausura jamais irá quebrar o laço que mantém com eles, que não esquece em nenhuma hora do dia.
A questão da maternidade é a mais abordada nos poemas que ali são lidos e é também o tema de uma obra que ali nasceu e que deu origem a um livro desenvolvido por Rosa Almeida. Escreveu-o e ilustrou-o para distribuir dentro do estabelecimento que tem uma ala para crianças, filhos de reclusas. “Haver aqui crianças era algo que me fazia muita confusão”, diz.
Escreveu e ilustrou-o. “Lá fora dava aulas de desenho e pintura”, explica. Antes de ali entrar, além de professora, também pintava porcelana. A história é uma homenagem aos dois filhos. Durante muito tempo dois pássaros visitavam o estabelecimento para picar algumas migalhas de pão que sobrava. Usou-os como personagens centrais da narrativa ilustrada a pinturas em acrílico e transpôs a personalidade dos filhos para os dois pássaros.
Escrever e pintar são a forma que tem de “sair” daquele espaço: “É assim que saio daqui, a ler, escrever e a desenhar”. Este tipo de iniciativas é onde também vai buscar alguma força até chegar o dia de regressar ao mundo. “Sentimos que há quem se preocupe connosco, mas também temos de fazer algo por isso”, diz.
Sofia concorda. Diz que escreve “com o coração” e que passa para o papel os sentimentos à velocidade da luz. Antes de ser detida nunca tinha escrito poesia. Descobriu ali que era capaz de o fazer e usa essa habilidade como forma de se esquecer onde está. “Ajuda-me a sair daqui. Faz-me sentir melhor. Com o que faço também gosto de fazer sorrir os outros. Por vezes chora-se, mas saem as emoções e tudo de bom que temos dentro de nós”, assegura.
A escritora, que é também madrinha do PML, que se prolonga até ao final do ano e tem também como padrinho Richard Zimler, não é a primeira vez que visita estabelecimentos prisionais para levar poesia. Recentemente fê-lo no Estabelecimento Prisional Regional da Polícia Judiciária do Porto. No EPSCB, o que mais a impressionou foi a questão da separação sempre presente entre mães e filhos. “Na Polícia Judiciária não é uma questão tão aguda, embora os homens também falem dos filhos”, afirma.
Em “dois minutos” diz ter-se esquecido onde estava e considera este tipo de visitas um “processo recíproco”: “Levei poesia e trouxe poesia”.