Irá a impaciência de Erdogan ser a sua derrota?

O voto curdo (e o apelo do líder da comunidade, há 20 meses na prisão) pode decidir as legislativas. A inaudita coligação de opositores conta com isso – e acredita que pode levar o Presidente a uma segunda volta.

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Para os apoiantes de Recep Tayyip Erdogan, as eleições deste domingo, legislativas e presidenciais, têm essencialmente a ver com estabilidade. Para quem critica o todo-poderoso chefe de Estado, nesta ida às urnas joga-se o Estado de direito, um sistema político onde diferentes poderes limitam os restantes e os equilibram. É a última oportunidade para travar Erdogan e a sua deriva autoritária.

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Para os apoiantes de Recep Tayyip Erdogan, as eleições deste domingo, legislativas e presidenciais, têm essencialmente a ver com estabilidade. Para quem critica o todo-poderoso chefe de Estado, nesta ida às urnas joga-se o Estado de direito, um sistema político onde diferentes poderes limitam os restantes e os equilibram. É a última oportunidade para travar Erdogan e a sua deriva autoritária.

Os turcos nunca tinham votado tanto em tão pouco tempo. Em 2014, elegeram Erdogan Presidente (cargo até então escolhido pela Assembleia Nacional). Em Junho de 2015, votaram em legislativas, quando o pró-curdo HDP (Partido Democrático do Povo) arriscou apresentar-se como tal (os deputados concorriam como independentes) e, ultrapassando a barreira dos 10%, retirou a maioria ao AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento, de Erdogan). Como este não conseguiu formar Governo os eleitores votaram de novo em Novembro, com o AKP a recuperar a maioria.

Em Abril de 2017 foi a vez de um referendo para alterar a Constituição, plano de Erdogan que o golpe de Estado falhado de 2016 ajudou a justificar. Pouco mais de 51% dos eleitores aprovaram as 18 emendas que põem fim ao sistema parlamentar, substituindo-o por um sistema presidencialista único.

Nesta transformação, desaparece a figura do primeiro-ministro e o chefe de Estado passa a poder dissolver o Parlamento e aprovar decretos executivos. Ganha ainda mais controlo sobre as Forças Armadas e nas nomeações para o Conselho Supremo de Juízes e Procuradores.

O referendo, tal como estas eleições, realizou-se sob estado de emergência, declarado cinco dias depois do fracassado golpe militar de Julho de 2016. A campanha do “sim”, protagonizada pelo AKP e pelo seu recém-aliado de extrema-direita, o MHP (Partido do Movimento Nacionalista), esteve quase sozinha. Oficialmente, os comícios eram proibidos. Na prática, quem estava com Erdogan tudo pôde; quem esteve contra, como o partido formado por Meral Aksener – expulsa do MHP – enfrentou dificuldades até para alugar pequenos espaços. Num episódio, a luz do restaurante onde organizara um encontro com apoiantes faltou enquanto ela falava.

Sob ameaça

Chegamos a 2018 e às eleições que vão marcar a entrada em vigor das alterações constitucionais, e que deveriam acontecer só a 3 de Novembro de 2019.

“Os desenvolvimentos na Síria e não só tornaram crítica a mudança para o nosso sistema executivo, para que possamos fazer avançar o futuro do nosso país de um modo forte”, defendeu Erdogan, em Abril. É a sua narrativa habitual. A Turquia está sob ameaça e precisa de um homem forte. Ele é esse homem e deve ser ainda mais forte.

Na verdade, na decisão de adiantar as eleições terá pesado a vontade de impedir que a oposição tivesse tempo para reagir. Assim, a nova coligação pré-eleitoral formada pelo AKP e pelo MHP (mais o pequeno BBP, Partido da Grande Unidade), a Aliança do Povo, aumentaria as possibilidades de vencer legislativas e presidenciais.

Ao acelerar o processo, o novo duo da política turca, Erdogan e Bahçeli, queriam travar o aumento da popularidade do novo partido de Aksener, uma “Dama de Ferro” (também lhe chamam “loba”). O seu Partido IYI (Bom) apela aos jovens e às classes trabalhadoras, numa mistura de conservadorismo e nacionalismo que pode conquistar votos ao AKP e ao MHP. Para além disso, a fraca saúde da economia (que cresceu a níveis inéditos quando o AKP chegou ao poder, em 2002) começa a notar-se no quotidiano, com a inflação a subir e a lira a desvalorizar – e os líderes temem que a situação piore.

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Meral Aksener, num comício em Istambul Huseyin Aldemir/REUTERS

O improvável aconteceu

Nem Erdogan nem Bahçeli acreditavam que a sua Aliança do Povo enfrentaria outra coligação. Afinal, nunca a oposição turca conseguira unir-se e a sua natureza diversa, somada à pressão do tempo, tornava a tarefa quase impossível. Só que o improvável aconteceu e os turcos vão mesmo poder escolher entre duas coligações: a de Erdogan e Bahçeli e a Aliança Nacional, que reúne grande parte do que sobra de oposição, com excepção do HDP.

Na Aliança Nacional cabem o CHP (Partido Republicano do Povo, fundado pelo “pai” da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk), nacionalista e laico; o partido de Aksener, IYI, à sua direita; o ultraconservador Partido da Felicidade (SP), de onde saiu o próprio Erdogan; e a pequena formação de centro-direita DP. Laicos, direita radical e conservadores religiosos juntos? Sim, porque em causa está a democracia turca e nisso todos concordam.

E assim Erdogan complicou a sua própria vida. Ainda deu uma ajuda extra: com medo da perda de votos do MHP (que tem sofrido enormes variações de popularidade), o novo “pai” da Turquia fez aprovar uma lei que permite contornar a barreira dos 10% para entrar no Parlamento, bastando a um partido fazer parte de uma coligação. Por isso, todos os partidos da Aliança Nacional terão deputados e deixou de fazer sentido apelar ao voto útil.

Alternativa religiosa

Tal como a “mãe” dos lobos pode conquistar eleitores aos dois partidos da Aliança do Povo, o SP, que os fundadores do AKP abandonaram por serem reformistas, é agora a face reformista do islão político e pode complicar a decisão de eleitores habituados a votar no AKP quase sem pensar.

É muito através da religião e da ideia de justiça que o novo líder do SP, Temel Karamollauglu (engenheiro de 77 anos), faz a sua oposição. Um dos temas permanentes é a injustiça flagrante da reacção à tentativa de golpe, quando a pretexto de uma caça aos apoiantes de Fethullah Gülen (o líder religioso que as autoridades responsabilizam pela insurreição militar), dezenas de milhares de funcionários públicos foram despedidos, 150 mil pessoas chegaram a estar detidas, dezenas de jornalistas foram parar à prisão e muitos jornais e rádios foram encerrados.

O mesmo aconteceu com os deputados curdos, quase todos na prisão, alvo da mesma acusação, “terrorismo”, neste caso por suspeitas ligações ao PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que combate o regime), não à “rede gulenista”.

“Estão a encerrar fundações, a prender académicos”, escreveu no Twitter Karamollauglu. “Qual é o seu crime? Estar na oposição, criticar o Governo”.

A incógnita Demirtas

A Aliança Nacional concorre unida às legislativas e cada partido tem o seu candidato presidencial. A ideia é que numa segunda volta todos apoiem o opositor mais votado. Nesse caso, o rival de Erdogan será Muharrem Ince, líder do CHP. As sondagens, pouco fiáveis, atribuem-lhe 27% a 32%, atrás de Erdogan e à frente de Aksener e do líder curdo, Selahattin Demirtas, encerrado numa cela há mais de ano e meio.

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Campanha em nome de Selahatin Demirtas, o líder curdo preso Umit Bektas/REUTERS

Muito depende de Demirtas: não passará à segunda volta mas se apoiar o candidato na oposição pode dar-lhe a vitória; não pode ser deputado mas se conseguir que o HDP repita a façanha dos 10% ajuda a Aliança Nacional a roubar a maioria à Aliança do Povo.

Por menos credíveis que sejam, as sondagens dizem que tudo é possível. E isso muda a disposição dos eleitores. Como o facto de líderes de formações tão distintas como o CHP e o IYI aparecerem juntos em campanha permitiu mudar a conversar. Erdogan apresentou este voto como uma escolha entre estabilidade e incerteza; nas últimas semanas a discussão foi sobre a separação de poderes ou a necessidade de todos os turcos terem os mesmos direitos.

O país é maior que o líder

Se a oposição conseguir uma maioria parlamentar e forçar uma segunda volta nas presidenciais sai reforçada para esse embate. Nesse cenário, pode conseguir reverter as alterações constitucionais. Claro que também é possível que Erdogan, uma vez eleito, dissolva o Parlamento e marque novas legislativas.

Resume num artigo no site da Al-Jazira Fuat Keyman, director do Centro de Política de Istambul: “Os turcos podem preferir líderes fortes mas muitos não querem viver num sistema em que o líder tem poder absoluto”. Mais importante é que, apesar dos esforços de Erdogan, “a sociedade turca não é tão polarizada como parece” e “a campanha mostrou que está pronta a ser governada com base em ‘valores partilhados’, como o direito à educação e a independência do poder judicial’”.

Ao mesmo tempo, deixou claro que a “Turquia é maior do que Erdogan, com a sua história, modernidade e dinamismo; é uma sociedade complexa, plural e resiliente e não pode ser reduzida a um líder, identidade ou ideologia”.