Uma rosa para a Lucília

A Lucília Santos tinha uma surpresa na manga, de que nem o marido sabia: uma carta sobre os sete golpes de sorte da sua vida.

Na despedida, a Lucília Santos deixou instruções para o seu funeral: não queria missa, não queria coroas de flores — no máximo, uma rosa — e queria que uma carta sua de 2015 fosse lida pela Rita Pimenta, copy desk do PÚBLICO desde sempre.

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Na despedida, a Lucília Santos deixou instruções para o seu funeral: não queria missa, não queria coroas de flores — no máximo, uma rosa — e queria que uma carta sua de 2015 fosse lida pela Rita Pimenta, copy desk do PÚBLICO desde sempre.

Haja rigor: uma carta destas não podia ter gralhas.

O texto é um “vintage Lulu”. Ignora os anos de doença, agradece e agradece, e conta a sua história através de um critério único: os golpes de sorte da sua vida. São sete e seguem uma ordem cronológica. Lisboa (sorte 1), Diário Popular (sorte 2), marido (sorte 3), Expresso (sorte 4), filho (sorte 5), PÚBLICO (sorte 6), neto (sorte 7). A isto somam-se as viagens que fez. Na base de tudo, a família e os amigos. “Tenho ou não razão para dizer que tive uma vida fantástica?”

À saída do funeral, um amigo falou-me de Juanita Powell-Brunson, cujo perfil foi publicado no New York Times praticamente no momento em que a Lucília estava a morrer em Lisboa. Faz parte da série dos bastidores de quem faz o jornal. O título é: “Apresento-vos a mulher que ‘realmente manda’ na redacção do New York Times.”

— Tens de ler: dos bolinhos aos Presidentes, é a Lucília do New York Times!

É verdade. Tirando uma diferença — em Portugal, era Marcelo Rebelo de Sousa que visitava a sua ex-secretária Lucília no Barreiro; nos EUA, foi Juanita quem foi à Casa Branca para ser apresentada a Barack Obama — é tudo igual.

Bumerangue. Vai e volta. Quando a Lucília morreu e me pediram um texto para publicar no site, “bumerangue” foi a primeira palavra que escrevi no computador. Não sei bem porquê. Nos 30 anos em que trabalhámos juntas, nunca falámos de bumerangues — e falámos de tudo e mais alguma coisa.

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Quando, em 2016, Nelson Évora foi director por um dia do PÚBLICO, a Lucília Santos estava doente. O tema dessa edição de aniversário do jornal foi "confiança". Antes de sair, o atleta enviou-lhe esta mensagem miguel manso

Escrevi-a ainda antes de pensar o que faria sentido dizer num texto para leitores que vêm aqui à procura de notícias e artigos de opinião, não de notas pessoais sobre alguém que ajudou a construir o PÚBLICO mas cujo nome não conhecem sequer, porque a Lucília era uma mulher dos bastidores, secretária e adjunta da direcção.

Quando a palavra saiu assim, como se não fosse minha, obriguei-me a pensar nela. E acabei a concluir que a Lucília nos deixou a lição do bumerangue. Que é isto: é importante dar aos outros. E, como o bumerangue raramente falha, a Lucília deu e deu e deu e deu — e foi recebendo de volta. Só podia ser assim.

Dirão os que não a conhecem: lamechices de quem escreve quando um amigo morre. Aceito. Mas não estou a falar de uma colega afável que ajuda os outros. Fazemos anos e estamos fora em reportagem? A Lucília lembra-se e telefona a dar um beijo. Todos os anos, durante 30 anos. Um filho teve febre ontem? A Lucília pergunta no dia seguinte se está melhor. Não estou a falar dos meus filhos. Estou a falar dos 159 filhos das 192 pessoas que trabalham hoje no PÚBLICO, dos jornalistas aos estafetas, passando pelos comerciais e administradores, e também dos filhos dos 500 colegas que cá trabalharam no passado. Houve uma discussão? A Lucília modera discretamente, suavizando as pontas bicudas. Alguém anda triste? A Lucília repara. Alguém anda cansado? A Lucília leva um pratinho de cerejas. Alguém anda impaciente, a Lucília ouve. Alguém tem fome? Há sempre bolachas no seu armário. Há más notícias? A Lucília é solidária e corajosa. Há boas notícias? A Lucília traz uma tarte de requeijão. Alguém escreveu um texto brilhante? A Lucília é a primeira a elogiar. O PÚBLICO foi melhor e mais rápido? A Lucília é a primeira a dizer, porque é a primeira a ler a concorrência e o próprio PÚBLICO, de fio a pavio, todos os dias. O PÚBLICO foi ultrapassado por outro jornal? É a primeira a dizer “amanhã vamos ser nós”. A Lucília não vestia a camisola. Vestia a camisola, as calças e ainda punha um lenço de seda ao peito.

Por outras palavras: a Lucília deu humanidade e ternura a esta máquina stressada, competitiva, frenética e meio louca que é um jornal diário. É fácil sermos atentos e generosos com uma pessoa por dia. Sermos assim, tantos anos, com tantas pessoas ao mesmo tempo, no meio de tanta correria, é só para alguns.

Parte deste texto foi publicado na edição online do PÚBLICO de 19 de Junho de 2018, horas depois da morte de Lucília Santos.