MP acusou marroquino de terrorismo sem interrogar jovem que ele teria recrutado
Jovem está detido em França, país cujas autoridades enviaram informação para Portugal. Juiz decide não levar arguido a julgamento por terrorismo. Critica falta de provas e diz que ser "muçulmano" e pesquisar nomes de líderes radicais na Internet não é prova de que se é terrorista.
Abdesselam Tazi, um cidadão marroquino acusado pelo Ministério Público (MP) de pertencer ao grupo Estado Islâmico e de recrutar operacionais em Portugal, não vai a julgamento por terrorismo. Num longo despacho, datado desta sexta-feira, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, Ivo Rosa, deixa fortes criticas à investigação levada a cabo, sublinha a falta de provas e, em jeito de alerta contra preconceitos, faz uma chamada de atenção: “O facto de o arguido ser muçulmano e cumprir os rituais da sua religião, não nos permite concluir que é radical/ortodoxo, fundamentalista, que segue o jihadismo violento e que aderiu à organização Estado Islâmico.”
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Abdesselam Tazi, um cidadão marroquino acusado pelo Ministério Público (MP) de pertencer ao grupo Estado Islâmico e de recrutar operacionais em Portugal, não vai a julgamento por terrorismo. Num longo despacho, datado desta sexta-feira, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, Ivo Rosa, deixa fortes criticas à investigação levada a cabo, sublinha a falta de provas e, em jeito de alerta contra preconceitos, faz uma chamada de atenção: “O facto de o arguido ser muçulmano e cumprir os rituais da sua religião, não nos permite concluir que é radical/ortodoxo, fundamentalista, que segue o jihadismo violento e que aderiu à organização Estado Islâmico.”
O marroquino, de 64 anos, que está em prisão preventiva na cadeia de alta segurança de Monsanto, em Lisboa, estava acusado de oito crimes: adesão a organização terrorista internacional, falsificação com vista ao terrorismo, recrutamento para o terrorismo, financiamento do terrorismo e quatro crimes de uso de documento falso com vista ao financiamento do terrorismo.
O juiz decidiu levar Tazi — antigo polícia — a julgamento, mas apenas pelos crimes de falsificação de documento (passaporte) e contrafacção de moeda (usou quatro cartões de crédito falsos). Nenhum destes crimes está, diz o magistrado, relacionado com o terrorismo. Será julgado em Aveiro e continua em prisão preventiva face ao perigo de fuga e de continuação da actividade criminosa. Os procuradores do Ministério Público que lideraram a investigação, João Melo e Vitor Magalhães, já garantiram, em declarações à Lusa, que vão recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Recrutava por 1500 euros, diz MP
Tazi recrutaria operacionais em Portugal, diz o MP, a troco de 1500 euros mensais. O principal recruta que terá radicalizado, e com o qual terá partilhado casa em Aveiro, foi detido em França a 20 de Novembro de 2016 por envolvimento na preparação de um atentado terrorista.
Na sequência dessa detenção houve troca de informação entre as autoridades francesas e portuguesas. E aproveitou o MP português para interrogar Hicham El Anafi, de 26 anos, e perguntar-lhe se foi radicalizado por Tazi? Não. E o juiz Ivo Rosa não poupa críticas: “O seu paradeiro é conhecido nos autos, na medida em que o mesmo está detido em França, pelo que teria sido possível, na fase de inquérito, a inquirição do mesmo ao abrigo das normas relativas à cooperação judiciária. Na verdade, este depoimento, para além de ser possível, era também essencial para a descoberta da verdade material.”
De facto, várias testemunhas ouvidas pelas autoridades portuguesas quer por polícias de outros países assacam ao ex-polícia a conversão de Hicham El Hanafi. Aliás, um irmão de Hicham El Hanafi que chegou a trabalhar em Portugal, na construção civil, garantiu que ele lhe confessou ter recebido treino militar na Síria durante dois meses, após o que foi mandado de volta para Portugal, com a missão de recrutar operacionais.
Mas Ivo Rosa diz que esses depoimentos não podem ser tidos em conta por serem "indirectos". E explica porquê recorrendo ao testemunho do irmão de Hicham El Hanafi às autoridades francesas: "Quanto ao depoimento da testemunha Mohamed Amine El Hanafi (...) o mesmo baseou-se no que ouviu dizer ao Hicham e à conversa telefónica que manteve com o seu pai e a sua mãe. Trata-se assim de um depoimento indirecto ou de ouvir dizer."
No despacho, o juiz diz ainda que no processo “não existe qualquer prova directa a ligar o arguido Tazi à organização terrorista Estado Islâmico”, que o mesmo negou pertencer à organização e que “nenhuma das testemunhas revelou qualquer conhecimento directo” da sua alegada ligação à organização.
Além disso, salienta, “não existe qualquer intercepção telefónica entre o arguido e alguém ligado ao Estado Islâmico, não existe qualquer fotografia ou pesquisa informática que demonstre a ligação do arguido ao Estado Islâmico”.
Fotos ortodoxas ou ocidentais?
Entre as provas elencadas, constavam fotografias que revelariam, diz o MP, uma “postura ortodoxa/fundamentalista”. Ora, o juiz Ivo Rosa, diz que pela “aparência física” a “maneira de vestir” a postura até pode ser classificada como “ocidental”. A juntar a isso, o magistrado sublinha que o arguido, religioso que “cumpria as orações diárias dos muçulmanos”, sempre negou qualquer ligação “ao sector ortodoxo/fundamentalista do islão, assim como qualquer forma de radicalismo, tanto mais que foi casado, duas vezes com mulheres não-muçulmanas, o que para um muçulmano ortodoxo é inaceitável”. E também nunca esteve na Síria. Esteve na Turquia, que serve de rota para muitos radicais que querem chegar ao território dominado pelo Estado Islâmico, mas diz o juiz, isso não prova que esteve na Síria.
Este é, aliás, o tipo de deduções que o magistrado judicial critica durante todo o despacho. Do facto de Tazi ter utilizado passaportes e cartões de crédito falsos, ter viajado para a Turquia, estar na posse de manuscritos do Islão, ser muçulmano e ortodoxo, e não havendo prova directa de que radicalizou Hicham El Hanafi não se pode, aponta, extrair "uma conclusão ou inferir" que "aderiu a uma organização terrorista". Nem que recrutou Hicham El Hanafi.
Viviam como refugiados em Aveiro
Seguno o MP, Abdesselam Tazi fez-se sempre acompanhar de Hicham El Hanafi, que havia radicalizado e recrutado em Marrocos, antes de ambos viajarem para a Europa. O MP diz que o processo de refugiado, os apoios e a colocação em Portugal deste suspeito foram idênticos aos do arguido, tendo ambos ficado a viver juntos no distrito de Aveiro.
"Pelo menos a partir de 23 de Setembro de 2013, a principal actividade desenvolvida pelo arguido em Portugal consistia em auxiliar e financiar a deslocação de cidadãos marroquinos para a Europa e em obter meios de financiamento para a causa jihadista", indica ainda a acusação do Departamento Central de Investigação e Acção Penal.
O Ministério Público afirma que, em 2015, o arguido se deslocou várias vezes ao Centro de Acolhimento para Refugiados, em Loures, para recrutar operacionais para o Daesh. Mas Tazi nem sequer estava em Portugal nessa altura, aponta Ivo Rosa.
No documento, percebe-se ainda que uma das suspeitas apontadas ao cidadão marroquino está relacionada com o facto de ter sido apreendido um manuscrito que alegadamente terá feito após ter realizado pesquisas na Internet sobre “líderes salafistas, extremistas islâmicos e terroristas conectados com a jihad islâmica”. Somos suspeitos se fizermos essas pesquisas? Ivo Rosa diz que não: “Não é possível indiciar que quem faz uma pesquisa relativa a esses nomes seja alguém com ligações a organizações terroristas ou que tenha aderido a uma organização terrorista.”
O advogado do ex-polícia marroquino mostrou-se satisfeito com a decisão instrutória. "Estou contente com esta decisão, que é justa, objectiva, concreta e fundamentada. Não há indícios de que tenham sido praticados factos relacionados com o terrorismo", disse Lopes Guerreiro aos jornalistas, à saída do Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa.