Há mais um barco com refugiados a testar a solidariedade europeia
Nas vésperas de uma cimeira de líderes europeus crucial para definir uma posição comum sobre a imigração, o ambiente é de tensão e desconfiança entre as principais capitais.
Quando o grupo de líderes europeus se reunir este domingo em Bruxelas para uma minicimeira com a imigração no topo da agenda, a urgência para que se chegue a um acordo será medida em números: 220 pessoas morreram afogadas nos últimos dias ao largo da Líbia, 650 mil migrantes chegaram a Itália desde 2014, e apenas 34 mil foram redistribuídos através do sistema de quotas da UE.
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Quando o grupo de líderes europeus se reunir este domingo em Bruxelas para uma minicimeira com a imigração no topo da agenda, a urgência para que se chegue a um acordo será medida em números: 220 pessoas morreram afogadas nos últimos dias ao largo da Líbia, 650 mil migrantes chegaram a Itália desde 2014, e apenas 34 mil foram redistribuídos através do sistema de quotas da UE.
Esta sexta-feira, um barco no Mar Mediterrâneo com mais de 200 refugiados a bordo voltou a ficar num impasse, num cenário semelhante ao ocorrido na semana passada com o Aquarius, que depois de ver os portos italianos fechados acabou por atracar em Valência, com quase seis centenas de migrantes a bordo.
O dia foi passado num jogo do empurra entre Malta e Itália, à medida que o Lifeline, operado pela organização não-governamental alemã Mission Lifeline, se afastava da costa líbia, onde tinha resgatado 226 migrantes.
O Governo italiano parece ter mudado de estratégia. Inicialmente, o ministro do Interior, Matteo Salvini, tinha aconselhado, de forma irónica, o Lifeline e o Seefuchs, outro barco que também resgatou migrantes na mesma zona, a dirigirem-se para a Holanda, referindo-se ao país onde ambos estão registados.
Horas depois, Salvini pediu a Malta que acolhesse o barco e o apreendesse. “Pela segurança da tripulação e dos que foram resgatados, pedimos humana e politicamente a Malta que abra um dos seus portos, e apreenda o barco e a tripulação”, afirmou o ministro que é também líder da extrema-direita italiana. Salvini deixou ainda bem claro que, caso Malta não receba o Lifeline, Itália irá fazê-lo, mas também irá apreender a embarcação e os seus tripulantes para levar a cabo uma investigação. E tirar um do Mediterrâneo uma das poucas embarcações de ONG que ainda salvam migrantes.
A pressão veio também de Espanha, que se ofereceu para dar “apoio humanitário” às autoridades maltesas para que acolham o barco. O Governo de La Valetta — que já tinha fechado os portos ao Aquarius — acabou por recusar receber o navio, sendo acusado por Roma de “desumanidade”.
O porta-voz da ONG, Axel Steier, pede a intervenção das instituições europeias. “Nenhum porto seguro nos foi ainda atribuído. Pedimos à comunidade europeia, seja a nível nacional ou local, que nos ajude a encontrar uma solução”, afirmou.
Lepra e hipocrisia
O episódio, a menos de dois dias da minicimeira de Bruxelas, ilustra o ambiente de discórdia que reina entre a União Europeia no tema da imigração. Em Itália, há muito que se instalou a ideia de que a falta de solidariedade dos restantes Estados-membro a deixou numa situação de elevada fragilidade pela sua condição de porta de entrada dos requerentes de asilo que se fazem ao Mediterrâneo para chegar à Europa. Com a chegada da Liga e de Salvini ao poder, esse sentimento passou a política de Estado.
A grande luta, nesta fase, é contra as organizações humanitárias que, desde o fim das operações de resgate ao abrigo da Mare Nostrum, assumiram a tarefa de salvar os migrantes que saem da Líbia a bordo de pequenas e frágeis embarcações. “As ONG estrangeiras, com pessoal estrangeiro, com financiamento estrangeiro, com bandeira estrangeira, não irão voltar a pisar solo italiano”, declarou Salvini durante um vídeo publicado no Facebook.
A dureza das posições do novo Executivo italiano – uma coligação entre populistas eurocépticos e a extrema-direita – tem causado irritação noutras capitais e o diálogo nunca pareceu tão difícil. Na quinta-feira, o Presidente francês, Emmanuel Macron, comparou, durante um discurso na Bretanha, os populistas à “lepra” e, embora não tenha nomeado a Itália, as reacções em Roma foram duríssimas.
O vice-primeiro-ministro Luigi Di Maio disse que as palavras de Macron foram “ofensivas e inapropriadas”. “A verdadeira lepra é a hipocrisia de quem expulsa os imigrantes para Ventimiglia [cidade italiana próxima da fronteira com a França] e chama a si a moral de exigir uma repartição igualitária [de refugiados]”, afirmou vice-primeiro-ministro e líder do Movimento 5 Estrelas, parceiro da Liga no Governo. Salvini disse não aceitar lições “de um país que tem o Exército junto à fronteira italiana”.
Desconfiança
As declarações dos dois homens-fortes do Executivo italiano reflectem a profunda desconfiança que grassa no seio da UE. A França tem proibido a passagem de milhares de refugiados que tentam atravessar a fronteira italiana, que acabam por permanecer numa espécie de limbo, rejeitados pelos dois países.
É neste contexto que a chanceler alemã Angela Merkel está a tentar promover um entendimento a nível europeu sobre as políticas de asilo para apresentar no Conselho Europeu da próxima semana – considerado a derradeira oportunidade antes de a Áustria, que também é governada por um Governo eleito com um programa fortemente anti-imigração, assumir a presidência da UE.
A participação italiana na minicimeira de domingo esteve em risco, depois de o primeiro-ministro Giuseppe Conte ter ameaçado boicotá-la após conhecer o teor de um rascunho que dizia não tomar em conta as preocupações de Roma. Para impedir um fracasso ainda antes de se sentarem à mesa, Merkel garantiu a Conte que da reunião de domingo não sairá qualquer conclusão decisiva, enquadrando-a como um “encontro de trabalho”.
Para Merkel, a falta de um acordo europeu sobre as migrações poderá ter um elevado custo político. O líder dos democratas-cristãos da Baviera e ministro do Interior alemão, Horst Seehofer, ameaçou fechar as fronteiras a requerentes de asilo, caso não haja um acordo satisfatório no Conselho Europeu. A decisão de Seehofer será um desafio directo a Merkel, quebrando de imediato a coligação governamental e, muito provavelmente, precipitando a Alemanha para novas eleições, que podem fortalecer ainda mais a extrema-direita.