Famílias separadas nos EUA enfrentam "sistema desumano" para se reunirem
Muitos pais não conseguem falar com os filhos porque ninguém atende os números de telefone que são dados na fronteira. Antigo director dos serviços de imigração diz que algumas famílias podem ficar separadas para sempre.
O Presidente dos EUA anunciou na quarta-feira que os agentes de imigração iam deixar de separar as famílias que tentam entrar no país sem documentos, mas o decreto que assinou nada diz sobre o futuro das mais de 2000 crianças que foram levadas, nos últimos meses, para centros de acolhimento espalhados pelo país. Segundo as organizações não-governamentais e as associações de advogados que dão apoio aos pais detidos na fronteira sem os filhos, a tarefa de reunir essas famílias está a ser um pesadelo – e a desorganização, a falta de recursos e o labirinto de agências envolvidas no processo podem levar à separação permanente de algumas famílias.
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O Presidente dos EUA anunciou na quarta-feira que os agentes de imigração iam deixar de separar as famílias que tentam entrar no país sem documentos, mas o decreto que assinou nada diz sobre o futuro das mais de 2000 crianças que foram levadas, nos últimos meses, para centros de acolhimento espalhados pelo país. Segundo as organizações não-governamentais e as associações de advogados que dão apoio aos pais detidos na fronteira sem os filhos, a tarefa de reunir essas famílias está a ser um pesadelo – e a desorganização, a falta de recursos e o labirinto de agências envolvidas no processo podem levar à separação permanente de algumas famílias.
Antes de o Presidente Trump ter decidido impor uma política de tolerância zero na fronteira, mandando deter e levar a julgamento os adultos que entram no país de forma ilegal, as famílias eram mantidas unidas durante a avaliação dos seus processos.
Quando os tribunais entravam em acção para dizerem que as crianças não podiam ficar detidas juntamente com os adultos – o que aconteceu em 2015, quando o Presidente era Barack Obama –, as autoridades optavam por libertar as famílias, com vigilância através de pulseira electrónica e data marcada para comparecer em tribunal.
Para além de ser vista como uma decisão mais respeitadora dos direitos humanos, essa política tinha outro objectivo: evitar que as crianças se perdessem num labirinto de agências que coabitam num sistema jurídico muito complexo e pouco acessível para os pais, sobretudo depois de serem deportados para os seus países de origem.
Várias agências
Quando uma família entra nos EUA, os processos dos adultos ficam a cargo da agência de fronteira (U.S. Immigration and Customs Enforcement, ou ICE) e os das crianças passam para as mãos do Departamento de Saúde e Serviços Sociais.
Este processo é igual se as famílias forem separadas fisicamente ou se forem mantidas unidas. Mas a tarefa de reunir pais e filhos é naturalmente mais complicada se os pais ficarem detidos perto da fronteira e os filhos forem enviados para centros de acolhimento a milhares de quilómetros de distância, que foi o que aconteceu nos últimos meses.
Na fronteira do Texas, por exemplo, um advogado da associação Texas Civil Rights Project disse à CNN que das 400 crianças que tentou localizar, apenas uma está novamente com um familiar. O processo "leva tempo, é lento e não é transparente", disse Efrén Olivares.
Os críticos da Administração Trump dizem que não houve a preocupação de acautelar a reunião das famílias quando a política de tolerância zero entrou em vigor.
Na fronteira, os agentes do Gabinete de Realojamento de Refugiados dão um número de telefone aos pais e dizem-lhes para ligarem quando quiserem falar com os filhos – mas, muitas vezes, ou ninguém atende, ou quando alguém atende não liga de volta para marcar a hora da conversa entre pais e filhos.
"Eles [os pais] ficam apenas com a esperança de que alguém lhes ligue para dar informações. É um sistema muito desumano", disse à CNN Melissa Lopez, dos Serviços Diocesanos para Migrantes e Refugiados em El Paso, no Texas.
Uma das mães que ficaram detidas na fronteira, Cindy Madrid, ainda não conseguiu falar com a filha de seis anos, Alisson. A criança foi levada para um centro cuja localização não foi revelada nem à mãe, nem às organizações que dão apoio aos migrantes e refugiados.
"Não falei com ela uma única vez. Tenho falado com a assistente social, mas ela só apontou o meu número e disse-me que a minha filha estava numa actividade", disse Cindy Madrid. Quando voltou a ligar, ninguém atendeu, disse. A repórter da CNN ligou para o mesmo número e recebeu uma resposta automática: "De momento não estou. Deixe uma mensagem com o seu nome, número e o nome da criança com que pretende falar. Obrigado."
Lentidão nos tribunais
Para além da confusão de agências, que muitas vezes não partilham informação em tempo útil, o sistema que tem como objectivo reunir as famílias tem também muitos outros problemas.
Como os processos de autorização ou deportação dos adultos têm prioridade em relação aos das crianças, e como são muitos os processos à espera que os poucos juízes de imigração peguem neles, muitas vezes acontece que os pais são deportados e os seus filhos ficam nos centros para onde foram enviados, nos EUA, em locais não revelados.
Nesses casos, o processo é ainda mais complicado, já que os pais têm de lutar contra linhas telefónicas que ninguém atende; a falta de dinheiro para pagar os serviços de advogados conhecedores do sistema de imigração norte-americano; e a impossibilidade de voltarem a entrar nos EUA para comparecerem em tribunal nos processos dos seus filhos, porque foram deportados.
"Ou o Governo não estava a pensar de todo no que iria fazer para reunir estas famílias, ou então decidiu que simplesmente não queria saber disso", disse ao Washington Post Natalia Cornelio, do Texas Civil Rights Project.
É por isso que um dos antigos directores do ICE na era Obama, John Sandweg, tem alertado para a possibilidade de algumas famílias ficarem separadas para sempre – ou, pelo menos, até que as crianças atinjam a maioridade.
Enviados para adopção
É uma corrida contra o tempo. Como os processos das crianças ficam para o fim, porque os tribunais dão prioridades às pessoas que estão detidas, a sua situação pode demorar três ou quatro anos a ficar resolvida. Muito tempo depois de os seus pais terem sido deportados, essas crianças podem acabar por ser enviadas para um lar de adopção, se os tribunais concluírem que nos seus países de origem não há condições para as receber em segurança.
"Quando a criança entra para o sistema de adopção, entram em acção várias leis estaduais que complicam ainda mais a situação. Uma criança de três anos não consegue contar o que lhe aconteceu. Então, é nomeado um tutor para representar os melhores interesses dessa criança. Entretanto, o pai é enviado, digamos, para as Honduras. Não fala inglês. Não tem dinheiro para contratar um advogado norte-americano", exemplificou John Sandweg, em declarações à NPR.
Assim que a criança obtém protecção nos EUA, "os direitos de custódia dos pais são cortados", disse Sandweg. E o resultado final pode vir a ser um cenário indesejado pelas mesmas pessoas que não querem permitir a entrada dessa criança: "Podemos estar a criar milhares de órfãos imigrantes nos EUA que um dia terão direito a obter a cidadania quando forem adoptados."
Para o antigo director da agência de imigração, a melhor solução seria libertar os pais que estão detidos e vigiá-los através de pulseiras electrónicas – Sandweg diz que entre 96% e 99% das pessoas com pulseira electrónica comparecem às audiências marcadas.
Mas isso – a libertação dos adultos que tentaram entrar nos EUA sem documentos – seria também o fim da política de tolerância zero do Presidente Trump.