O livro resistirá?
O livro pertence-nos na posse da sua leitura, na visita da sua releitura, na memória do seu sossego.
A Feira do Livro de Lisboa – a 88.ª – foi um êxito, desde logo pelo número de pavilhões, editoras e visitantes. Feira do Livro, como outras no país, e não Feira dos livros. Porque é uma festa do livro e da sua importância linguística, cultural, educativa, social e relacional.
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A Feira do Livro de Lisboa – a 88.ª – foi um êxito, desde logo pelo número de pavilhões, editoras e visitantes. Feira do Livro, como outras no país, e não Feira dos livros. Porque é uma festa do livro e da sua importância linguística, cultural, educativa, social e relacional.
Jean Guitton disse sobre o livro que “se tivesse sido inventado depois do computador teria sido uma grande invenção". Até por variadas e curiosas razões, tais como um maior e acessível campo de visualização, a sua completa disponibilidade, o não consumo de energia pela sua leitura, e até o seu cheiro de maior ou menor vetustez.
O intelectual e polímata George Steiner escreveu, há uma década, um pequeno livro com o belíssimo título O silêncio dos livros. Uma obra onde alerta para a ameaça que paira sobre a escrita e o livro, no actual contexto tecnológico e informacional, em que a tirania da tele e virtual presença se tornou um novo “cárcere”. Por isso, ele conclui que “nunca os verdadeiros livros foram tão silenciosos”.
O livro é docemente patrimonial, intimista dentro de nós. Pertence-nos na posse da sua leitura, na visita da sua releitura, na memória do seu sossego. Por isso, sabemos sempre onde encontrar a frase ou o excerto do livro que já lemos, como quem sabe a gaveta do vestuário.
De um modo alegórico, poder-se-á dizer que o livro exprime alguma forma de supremacia do espírito sobre a matéria. O livro é um antídoto contra as agora novas formas de ilusão e de alucinação com que se faz negócio, se abrem auto-estradas de ruído e se proclamam ilusórias comunidades ditas esclarecidas.
De novo, cito O silêncio dos livros: “A educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada. Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui até o saber de cor que é também um saber do (cor)ação, pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em nós uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça.”
Nada tenho contra – bem pelo contrário – as novas formas de transmissão de saberes, vivências, tempos. E se a Internet veio substituir a ardósia das escolas e o e-mail o personalismo das conversas e dos estados de alma, a importância substantiva do livro não diminuiu na rota de uma maior mundividência.
Pergunto-me a razão por que leio uma série de livros no mesmo “espaço de tempo” (passe esta aparente incongruência de juntar duas grandezas distintas em que uma não mede a outra), em vez de ler até ao fim um livro de cada vez. Não por desistência da leitura anterior, mas porque esse ritmo desordenado é a minha maneira de valorizar cada um dos livros. Porque, para mim, o livro faz parte da família. Por isso, gosto de repartir o meu relógio equitativamente, numa união entre o tempo mental e espiritual e o modo como os livros se dão a ler. Hoje, preciso de ler isto e não aquilo, amanhã será provavelmente diferente. A leitura e a companhia do livro não são actos mecânicos. São função do estado de espírito, da curiosidade, da utopia, até do cansaço em cada momento vivido. Porque um livro é muito mais do que o ler.
Olho os livros todos os dias. Fixamente e em vertigem. Como se tivesse que tudo ler hoje, porque amanhã pode não ser tempo já de ler. Quero abraçá-los. Ler este e aquele, mas reler aquele outro ainda. Sim, porque a releitura é um itinerário empolgante de uma leitura sobre leitura em que me deixo envolver com encantamento.
A escassez ensinou-me a valorizar o livro. Recordo-me dos tempos de infância, quando esperava com ansiedade a biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian e escolhia os livros que devorava com gosto e disciplina, naqueles poucos dias em que eram meus. Nos tempos de agora, não posso deixar de salientar o Plano Nacional de Leitura, que é bastante meritório e merece ser acarinhado como modo de criar boas práticas de leitura nas futuras gerações. E nós sabemos quanto o país precisa disso, face a uma realidade de falta de hábitos de leitura e de um certo conformismo com a exiguidade do saber. É uma forma de lhes mostrar, desde muito cedo, o carácter ao mesmo tempo valorizador e lúdico do livro, numa sociedade demasiado obcecada e sôfrega com o mundo virtual e com a presença obsessiva da imagem efémera e circunstancial.
Os tempos não estão, porém, fáceis para a indústria do livro. Paradoxalmente, há hoje um grande aumento de livros cá editados, ao mesmo tempo que há uma tendência para um decréscimo de vendas. Segundo escassos dados conhecidos, neste século os títulos em língua portuguesa aumentaram 63%, sobretudo através de obras originais, conforme se constata no quadro. No entanto, em 2016 as editoras, com receitas de 142 milhões de euros, tiveram uma quebra de 21,6 milhões de euros face a 2011 (menos 2,75 milhões de livros), ano do auge da crise económica no país. Em 2017 foram vendidos 11,9 milhões de livros (não escolares) em Portugal (o que estatisticamente dá uma média de 1,1 livros por ano por pessoa ou 1,3 livros para a população com mais de 14 anos), menos 5% do que no ano anterior.