Filipa César, a investigadora das imagens perdidas

Após ano e meio de viagens por festivais de todo o mundo, Spell Reel chega a sala em Portugal. Por trás desta viagem aos arquivos que sobreviveram do cinema guineense da independência está Filipa César, em questionamento constante.

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Rui Gaudêncio

No princípio, era a película: as bobinas sobreviventes dos arquivos nacionais de cinema da Guiné-Bissau, menos de metade do acervo rodado entre 1963, início da luta contra o colonialismo português, e 1980, data do golpe de estado que destituiu Luís Cabral. Muito do material fora rodado por quatro cineastas guineenses que estudaram cinema em Cuba e, depois, prosseguiram o trabalho na Guiné sob a batuta de Chris Marker; o que sobrevive está em estado fragmentado, incompleto.

Essas bobinas estão na base de um projecto multi-disciplinar conduzido ao longo dos últimos anos pela artista portuguesa Filipa César (n. 1975) sob o genérico Luta Ca Caba Inda – “a luta ainda não acabou”, que era também o título de um filme colectivo, nunca terminado, que pretendia fazer o “ponto da situação” da Guiné seis anos após a independência. Ao longo de outros tantos seis anos, Filipa e uma equipa da qual faziam parte os realizadores Flora Gomes e Sana na n’Hada (os dois sobreviventes do programa original estatal de cinema) pegaram nas imagens digitalizadas e viajaram com elas – pelo mundo (com uma série de instalações e conferências) mas também pela Guiné, com um projecto de “cinema itinerante” que as exibiu nas próprias localidades e regiões onde tinham sido originalmente filmadas.

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Agora, no fim do percurso, está Spell Reel – longa-metragem que teve estreia, há ano e meio, no festival de Berlim, e depois de um percurso invejável por festivais chega agora à exibição comercial entre nós (a partir de quinta, 21, no cinema Ideal em Lisboa). Entre Bill Morrison, Harun Farocki e Chris Marker, Spell Reel é muitas coisas: um documentário que regista os vários passos do seu próprio processo de criação; um ensaio sobre o modo como estas imagens concebidas num contexto muito específico são vistas e entendidas um quarto de século (ou mais) mais tarde; uma reflexão sobre a própria natureza da imagem e da sua leitura; uma memória descritiva de um projecto artístico fora do vulgar.

Por Skype de Berlim, onde reside, Filipa César confessa-se extremamente contente com a maneira como o filme tem sido recebido ao longo de uma extraordinária carreira internacional – e não vê diferença nenhuma entre as suas práticas nas artes plásticas e o cinema.

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A visão de Spell Reel sobre os arquivos coloniais e pós-coloniais parece torná-lo no filme ideal para o momento em que vivemos, com o grande interesse por este material anteriormente desconhecido ou esquecido. Isso é um acaso, ou era parte do projecto original?
Sempre tive interesse por estas temáticas, mesmo nos trabalhos iniciais, mas aí se calhar de forma mais abstracta. Em 2009 fui convidada para ir a Londres passar um mês a ver filmes do Colonial Film Project, que abriu os arquivos coloniais britânicos, iniciado por um académico chamado Colin McCabe, que era muito amigo do Chris Marker. É através dele que conheço o Marker, que por seu lado me fala do Sana na n’Hada... E ao mesmo tempo, através do Harun Farocki, que me pôs em contacto com o colectivo Otolith Group, apercebi-me de uma prática que já existia em Londres, de levantar estas questões. O facto de conhecer todas essas pessoas, com quem tive um convívio muito próximo, ajudou-me também a procurar instrumentos para abordar estas questões. Houve uma frase do Kodjo Eshwun, do Otolith Group, que eu não tinha formulada mas que sentia presente em mim: “temos de pensar que vivemos numa condição pós-colonial”.

O filme é aliás apresentado como um trabalho de criação colectiva “montado” por si, atribuído a todos aqueles que trabalharam directamente consigo na produção ou na conceptualização.
Chamar a este filme colectivo é também uma provocação em relação à essência do cinema, que é muito mais colectiva do que a maneira como ele é muitas vezes apresentado – aquela ideia do filme de autor... Mas considero este filme colectivo na sua essência: fala de preocupações que nunca poderiam ter surgido senão no contexto de uma conversa, de uma reflexão, colectivas. Acabo por ser aquela que encontra uma forma, uma linguagem para o organizar, mas chegámos a muitas dessas ideias juntos. Foi um processo longo, no contexto muito específico de uma “reclamação” de uma certa história do cinema e de uma narrativa do cinema militante. Há toda uma série de imagens e de conversas que se podem criar a partir destes fragmentos de uma prática de cinema que nunca chegou a atingir os objectivos a que se propôs. O que se faz com isto, sem tentar acabar filmes que nunca foram acabados, sem tentar fazer a propaganda que não foi feita, mas aceitando a ruína? Que tipo de questões podemos levantar, em conjunto, e com perspectivas diferentes?

É muito curioso ver a reacção dos espectadores guineenses nas sessões de cinema – eles literalmente fazem as imagens suas. Isso influenciou a construção do filme?
Aí entra uma dimensão que me está cada vez a interessar mais, que é a ideia de uma cultura animista. O cinema tem a capacidade de um objecto – de luz, no fundo – se transformar, voltar a dar anima aos mortos, àqueles que já não estão lá. Esse lado, no contexto de uma cultura animista como a guineense, é muito interessante. O que me apercebi nas sessões de cinema móvel – e só o entendi durante o processo e posteriormente a mostrar o filme – é que há um lado quase de ritual, de reabitar essas imagens, uma reunião entre o lado animista da cultura e o lado animista do cinema. A própria linguagem do crioulo não funciona com metáforas ou equivalências: as pessoas são a coisa, habitam a coisa. Houve uma miúda que tinha acabado de conhecer o Sana na n’Hada há três horas atrás, foi ter com ele e disse “meu pai”. Não era “o Sana é como se fosse meu pai”: era “o Sana é meu pai”.

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Como se não houvesse um intervalo de tempo?
Exactamente, há uma espécie de colapso temporal. E se calhar é por isso que foi possível fazer este projecto: o cinema passou a ser esse local comum, um espaço em que podemos trazer os nossos conflitos sem termos que nos proteger ou justificar.

Curiosamente, este é um filme que parece abrir novas portas sempre que se vê, como se não tivesse uma forma fixa…
(pausa) Acho que isso é mais um resultado do que um objectivo, no sentido que tem a ver com o processo de montagem. Construí-o através de um diagrama, físico, com um painel de post-it enorme, onde tinha vários filmes, que tinham a ver com os cinco anos de pesquisa e os vários materiais que fui coleccionando e registando. Sou eu que monto os meus filmes, e para mim montar é entrar numa outra dimensão – aliás, isolei-me, aluguei um espaço em Potsdam durante um mês para ter uma comunhão total com o material, e é uma clausura total, não faço diferença entre dia e noite, durmo quando estou cansada...

Em que é que esse processo de criação é diferente do seu trabalho numa galeria, por exemplo?
(pausa) Não faço grande distinção entre o Spell Reel e outras práticas. Penso numa instalação minha como Le Passeur (2008), que tem duas projecções impossíveis de ver ao mesmo tempo: para mim essa forma foi necessária para aquilo que eu queria, que era falar sobre as passagens, sobre o cinema como uma forma de passagem, e ao mesmo tempo sobre o lado secreto que está envolvido nas passagens. Portanto, ou víamos o rio ou víamos os passadores a falar. A própria experiência no espaço implicava qualquer coisa que ficava sempre oculta. No Spell Reel eu estava a reflectir na nossa experiência com o arquivo da Guiné-Bissau, em que transformámos a sala de cinema do Arsenal, em Berlim, numa sala de montagem colectiva. Levávamos material em bruto para a sala, dávamos o microfone ao Sana ou às pessoas, e comentávamos o material, como se estivéssemos a ver imagens para as seleccionar. Como tínhamos transformado o cinema numa sala de montagem, pensei que tinha de transformar o filme também num espaço de montagem – e na montagem temos sempre duas imagens, a imagem de que estamos à procura e depois a imagem de edição. Daí que o arquivo apareça sobreposto à imagem documental contemporânea.

Essa ideia da imagem como uma constelação de imagens não lineares é algo que, por exemplo, Godard tem explorado muito, mas que vem também de Chris Marker...
Claro! O Sans Soleil é um filme fundamental para mim desde que o vi pela primeira vez – tocou-me formalmente e no seu conteúdo, na forma como ele é, na sua poesia e na sua política. Mas depois há um lado pessoal muito estranho: em 2003, vejo um filme que fala de dois locais que estão intimamente ligados à minha própria biografia – a Guiné, onde o meu pai foi obrigado a marchar, e o Japão, com o qual tenho uma relação muito à distância, quase fantasmagórica...

E eis Marker, que ensinou estes cineastas, a ressurgir como se estivesse a velar sobre o projecto...
Completamente!