Ioga: uma história de conquista e de fusão
No último século, a prática espiritual indiana ultrapassou as fronteiras do país, cruzou-se com a cultura ocidental e conquistou o mundo. O Dia Internacional do Ioga celebra-se nesta quinta-feira.
Ashtanga, hatha, vinyasa – mesmo para quem não faça ioga, algum destes nomes poderá eventualmente soar familiar. São alguns dos tipos de práticas mais comuns da disciplina originária da Índia que, nas últimas décadas, se cruzou com a cultura ocidental e se espalhou pelo mundo.
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Ashtanga, hatha, vinyasa – mesmo para quem não faça ioga, algum destes nomes poderá eventualmente soar familiar. São alguns dos tipos de práticas mais comuns da disciplina originária da Índia que, nas últimas décadas, se cruzou com a cultura ocidental e se espalhou pelo mundo.
Em 2015, no primeiro Dia Internacional do Ioga – que se celebra nesta quinta-feira, 21 de Junho –, cerca de 35 mil pessoas juntaram-se na Índia para superar o recorde mundial da maior sessão de ioga. Em Portugal, como no resto do mundo, o dia é marcado por dezenas de eventos (ver caixa).
A capacidade de, através do ioga, dar a conhecer a cultura e os costumes da Índia é algo que tem sido importante para o Governo indiano. “Acho que é uma ferramenta para promover o soft power da Índia”, avalia James Mallinson, investigador principal do Hatha Yoga Project, um projecto de investigação de cinco anos, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação. “Foi desde que o primeiro-ministro [Narendra] Modi chegou ao poder que o próprio Governo tem feito esforços neste sentido”, acrescenta ao PÚBLICO.
Em 2014, Modi apelou às Nações Unidas a favor da instituição da data. “O ioga é uma dádiva incalculável da tradição ancestral da Índia”, disse então num discurso para a assembleia-geral da ONU. “Não tem que ver com exercício, mas com o descobrir o sentido de unidade entre nós, o mundo e a natureza.”
Tal como noutros países, em Portugal o número de praticantes tem crescido a um ritmo acelerado nos últimos anos. Em 2017, a primeira edição do Wanderlust 108 – um triatlo mindful que inclui corrida, uma aula de ioga e outra de meditação – reuniu cerca de 2500 pessoas, muito acima das cerca de mil que estavam previstas. “Não estávamos nada à espera”, comenta Nuno da Silva Carvalho, CEO da Soma, empresa responsável pela organização do evento.
A comunidade de milhares de pessoas que entretanto juntaram centra-se no facto de que “toda a gente, hoje em dia, quer fazer uma pausa”, justifica. “Passamos o dia a correr e as pessoas estão a ficar fartas deste estilo de vida.” O evento – que este ano decorre a 30 de Setembro – é também um momento de convívio.
Embaixadores nos Estados Unidos
Swami Vivekenanda – um monge de Calcutá que foi até Chicago em 1894 falar no Parlamento das Religiões do Mundo sobre hinduísmo – é considerado um dos primeiros embaixadores do ioga. Durante anos viajou pelos Estados Unidos e chegou a publicar um livro no qual explicava os sutras do ioga de Patanjali, Raja Yoga. Era bastante crítico das práticas físicas do ioga, privilegiando o mais tradicional lado espiritual.
Como este, outros mestres transmitiram saberes ancestrais do ioga nos Estados Unidos, ao longo da primeira metade do século XX. Coincidiram com um período em que se começava a desenvolver-se “uma cultura de bem-estar físico”, aponta Mallinson, e “essas ideias associaram-se ao ioga”.
Até aí, o ioga era mal visto por grande parte da sociedade ocidental, e até mesmo pela própria população da Índia, revela o investigador. “Era frequentemente associado a homens de fé, extremistas, que faziam coisas como manter os braços no ar durante anos e anos. [Muitas pessoas] ficariam preocupadas se os seus filhos começassem a desenvolver um interesse pelo ioga e os abandonassem para sempre para se tornarem homens de fé. Os pais não voltavam a ver os filhos”, continua, contextualizando.
Assim, o ioga – e mais concretamente os aspectos físicos da sua prática – foi sendo mais aceite, em linha com a ideia do culto do corpo. Nos anos 1960 e 1970, ganhou ainda mais adeptos, em parte devido ao movimento hippie.
As sequências mais dinâmicas de movimentos do ashtanga yoga, popularizado na segunda metade do século XX por K. Pattabhi Jois, ajudaram a elevar o estatuto da prática em geral. É, ainda hoje, uma das formas mais conhecidas de ioga.
Ainda assim, a prática manteve um estatuto marginal até à década de 1990, quando começaram a surgir estúdios de ioga nas grandes cidades. É difícil atribuir a uma única pessoa ou entidade a responsabilidade pelo grande boom de ioga no mundo. O que Mallinson identifica é uma viragem na abordagem à prática: de repente, as pessoas eram capazes de ir a uma aula, uma ou duas vezes por semana, e depois continuavam com as suas vidas. “Até aí, [o ioga] era considerado um estilo de vida, uma abordagem holística.”
Ioga de fusão
A prática de ioga tem cerca de cinco mil anos, de acordo com alguns investigadores – outros referem períodos anteriores. No último século, ultrapassou as fronteiras da Índia. Claro que o estilo de ioga que vemos hoje em dia no ginásio está bastante longe das práticas originais e foca-se muito no aspecto físico, em vez no espiritual. Como o sushi com queijo Philadelphia ou a pizza de Nova Iorque, o ioga tornou-se um produto da convergência entre a Índia e o Ocidente.
Actualmente, a oferta de aulas é extensa e diversa: hot yoga, beer yoga, dog yoga, karaoke yoga, nude yoga e cannabis yoga são alguns exemplos mais peculiares. No ano passado, circulou pela Internet um vídeo sobre uma aula de gun yoga (ioga de pistolas), que não passava de uma sátira de um grupo de comédia do YouTube.
Apesar de reconhecer que tem havido algum “descontrolo” na criação de novas práticas de ioga, Mallinson relembra que o objectivo do ioga é atingir um estado de espírito de absorção, em que a mente está absolutamente focada num ponto. “A palavra ‘ioga’ significa o resultado, não a prática”, aponta o investigador. “Em teoria, qualquer coisa que nos leve a esse estado de espírito funciona. Nos textos da Índia há diferentes abordagens para o atingir, mas não vamos lá encontrar o dog yoga”, brinca.
Nos dias de hoje, o hatha yoga é uma das práticas mais comuns e define-se pelo seu conjunto de técnicas predominantemente físicas. O termo foi utilizado pela primeira vez há cerca de mil anos, de acordo com Mallinson, embora existam registos de gurus que praticavam alguns elementos físicos muito antes disso. É deste tipo de ioga que deriva a maioria dos estilos mais populares no Ocidente, como o ashtanga e iyengar.
O ioga aéreo é um dos novos tipos de prática que se tornaram populares e que têm diferentes ramificações. Em Portugal, é conhecido como ioga suspenso, um conjunto de práticas que Rui Oliveira Costa, director do Jaya Aerial Lab, começou a desenvolver em 2010. “Dentro da prática do ioga que fazia existe uma que utiliza cordas na parede, o kurunta yoga. Na altura, senti que a utilização das cordas na parede tinha benefícios, mas suspendendo-as conseguia explorar outras posições que não estavam integradas no kurunta yoga”, justifica.
Mais tarde, trocou as cordas por tecidos, por uma questão de conforto, e, a partir daí, começou a desenvolver um método próprio, compilando uma série de posições. Recorreu à ajuda de osteopatas e quiropráticos para o ajudarem a identificar as vantagens e os cuidados a ter em cada posição. O ioga suspenso, explica ainda Rui Oliveira Costa, assenta em quatro pilares: hatha yoga, que utiliza o tecido como acessório; um elemento restaurativo; o condicionamento físico e uma parte acrobática. Curiosamente, conta, “existem relatos de yogis que passavam horas pendurados nas árvores”.
A evolução do ioga não tem decorrido num sentido único, mas antes de uma forma circular, entre o Ocidente e a Índia. De acordo com Mallinson, as práticas dos gurus indianos “estão a mudar com a globalização do ioga”. “Encontramos exemplos de alguns [homens de fé] a fazer estas práticas [modernas] e a reivindicar que são de uma herança ancestral”, conta.
Mark Singleton – que faz parte também do Hatha Project – tem uma visão bastante controversa sobre as raízes do ioga, que expôs em publicações como Yoga Body – The Origins of Modern. Este argumenta que muitas práticas que os professores defendem terem cinco mil anos foram desenvolvidas recentemente.