Eurodeputados avançam com directiva para criar filtros online
Proposta tem suscitado críticas por parte de alguns parlamentares, de académicos e de associações de direitos dos consumidores.
Os eurodeputados deram nesta quarta-feira um passo importante para mudar as regras dos direitos de autor na era da Internet, ao aprovar uma controversa proposta de alteração à directiva sobre direitos digitais. Se entrar em vigor, poderá vir a criar filtros para impedir a publicação de conteúdos protegidos em plataformas como o YouTube, o Facebook, o Tinder e muitas outras.
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Os eurodeputados deram nesta quarta-feira um passo importante para mudar as regras dos direitos de autor na era da Internet, ao aprovar uma controversa proposta de alteração à directiva sobre direitos digitais. Se entrar em vigor, poderá vir a criar filtros para impedir a publicação de conteúdos protegidos em plataformas como o YouTube, o Facebook, o Tinder e muitas outras.
A missão é acabar com a pirataria online na União Europeia e proteger os direitos das pessoas cujo trabalho circula na Internet sem autorização, mas alguns artigos da directiva actualizada levantam preocupações sobre a liberdade de expressão, criatividade e a liberdade de publicar informação online.
"Esta votação assinala o primeiro passo dos procedimentos parlamentares para adoptar leis de direitos de autor adequadas a ir ao encontro dos desafios da Internet. As últimas leis sobre direitos de autor na sociedade de informação já têm 17 anos e a Internet mudou muito", afirmou o relator da proposta de revisão das regras, Axel Voss. "Editores de notícias e artistas, especialmente os mais pequenos, não estão a ser pagos o suficiente devido a práticas poderosas no mundo online por parte de plataformas de partilha de conteúdo e agregadores de notícias. Isto está errado, e a nossa visão é corrigir isso."
A Comissão dos Assuntos Jurídicos aprovou – com 14 votos a favor, nove contra e duas abstenções – a proposta para novas regras, que começarão a ser negociadas entre o Conselho Europeu, o Parlamento e a Comissão Europeia. O Governo português apoia as mudanças e o único eurodeputado naquela comissão, António Marinho e Pinto, votou a favor. O objectivo é que o processo de adopção formal esteja concluído em 2021.
Há dezenas de investigadores europeus e associações de defesa digitais preocupados com essa possibilidade, com campanhas a pedir para “salvar a Internet” a circular nas redes sociais. Entre os maiores problemas apontados está o artigo 13, que propõe que os prestadores de serviços online utilizem “tecnologias efectivas de reconhecimento” para barrar conteúdo pirateado. Funcionam com base em mecanismos que detectam porções de um ficheiro de áudio, texto, ou vídeo que estão protegidos por direitos de autor.
“Não é assim tão simples. Se isto vai para a frente, vai ser difícil distinguir correctamente todo o conteúdo que chega às plataformas. Há casos em que se usa conteúdo baseado no de outro autor sem o infringir”, explica ao PÚBLICO a investigadora Ana Ramalho, que lecciona sobre propriedade intelectual na universidade de Maastricht, na Holanda. É uma das académicas a assinar cartas abertas enviadas ao Parlamento contra alguns pontos da directiva. “A paródia ou crítica social, o uso privado, e a autorização do uso por pessoas com deficiências são usos legítimos. Não conheço um filtro capaz de detectar correctamente todas estas subtilezas.”
A tecnologia para filtrar vídeos, fotografias e textos requer também um grande investimento de tempo e dinheiro para desenvolver, o que daria vantagem a empresas que já usam esta tecnologia, como o YouTube e o Facebook, referem os críticos da proposta. “O problema do artigo 13 é querer ser uma solução universal. A definição de plataformas inclui imensos tipos de sites e nem todos têm sistemas de filtros ou dinheiro para os criar”, diz Ramalho.
Os vídeos carregados para sites que já têm filtros, como o YouTube, são automaticamente comparados com uma extensa base de dados de ficheiros enviados por proprietários de conteúdo para garantir que não há conteúdo protegido por direitos de autor a circular sem autorização no site. Para já, a decisão de eliminar este conteúdo não é automática e cabe aos detentores de direitos de autor (por exemplo, um estúdio de cinema ou uma editora de música).
Em Abril, várias associações de defesas dos direitos digitais em Portugal – como a associação portuguesa D3 (Defesa dos Direitos Digitais) e o departamento português da Internet Society – também escreveram uma carta aberta a Marinho e Pinto, notando que a mudança é uma “restrição desproporcional” à liberdade de expressão, ao “submeter todos os conteúdos enviados pelos utilizadores a uma monitorização prévia”.
"Taxa do link"
Outra parte da directiva que tem recebido muita atenção negativa são as novas protecções das publicações de imprensa, descrita pelos opositores como “taxa do link”.
“Permitirá às publicações de imprensa impedir a partilha de excertos de notícias ou obrigar as plataformas a negociarem uma licença para essa partilha ser permitida”, lê-se na carta aberta das associações portuguesas. “A partilha dos chamados snippets (conjunto de título, excerto da notícia e/ou nome da publicação) terá sempre de ser objecto de uma licença para ser permitida”.
Com isto, quer-se impedir que sites agregadores de notícias (como o Google News) lucrem à custa dos sites de notícias online. “O novo direito responde a uma falha substancial no mercado”, defende Thomas Höppner, professor em propriedade intelectual na universidade de Wildau, na Alemanha, na introdução de um estudo sobre a directiva para o Parlamento Europeu. “As notícias online podem ser copiadas e distribuídas globalmente em várias plataformas num piscar de olhos. Há agregadores de notícias que reúnem, combinam e recolhem notícias automaticamente", acrescenta Höppner que diz que os "efeitos desta exploração são negativas para as publicações online".
Medidas com propostas semelhantes à da directiva já foram postas em vigor em alguns países europeus, sem sucesso. Na Espanha, onde as publicações não podiam abdicar do direito de cobrar uma taxa pela utilização de partes dos seusa artigos, o Google News fechou operações quase imediatamente. A empresa disse que a sua plataforma é um serviço gratuito e, portanto, obrigar ao pagamento de uma taxa para os sites de notícias não era uma prática sustentável (o Google News não tem anúncios, embora as notícias também apareçam no motor de busca, que é rentabilizado com publicidade). Um ano depois da medida entrar em vigor, um estudo encomendado pelos editores de media espanhóis mostra que foram os sites de notícias a sair prejudicados, com uma queda de 6% no tráfego.
Na Alemanha, como o tráfego dos sites de notícias caiu a pique quando o Google News deixou de publicar excertos das notícias, as plataformas alemãs negociaram uma licença gratuita com o gigante norte-americano dando-lhe vantagem face a outros agregadores. Para a associação portuguesa D3, o exemplo mostra como as novas leis europeias podem “reforçar a posição monopolista” de grandes empresas.
A investigadora Ana Ramalho acrescenta que não faz sequer sentido o excerto de uma notícia estar protegido pelo direito de autor. “Não se pode ter direito sobre as primeiras duas frases de uma notícia, ou o título. Dizer que ‘O Cristiano Ronaldo marcou o primeiro golo” não é uma criação literária. É um facto”, diz Ramalho. “Esta é só a minha interpretação da directiva. O facto de ser vaga é outro problema. É o resultado de vários compromissos políticos, mas leva a que cada Estado possa interpretá-la consoante a sua própria cultura jurídica.”
Contrariamente ao novo Regulamento para a Protecção de Dados que tem de ser aplicado na íntegra em todos os países da União Europeia, uma directiva define um objectivo que todos os Estados-membros devem atingir. “Dificulta a circulação de informação entre países porque não temos um direito de autor europeu”, diz Ana Ramalho. “Isto obriga cada país a introduzir um novo direito nacional, mas tem de ser adaptado às leis vigentes por isso não estamos a introduzir um só direito, estamos a introduzir 28”.
Ainda há um longo caminho a percorrer até a directiva ser oficialmente aprovada. Os próximos passos são a negociação de um mandato para definir um acordo final entre o Parlamento Europeu, o Conselho, e a Comissão Europeia.
“Ainda podemos mudar a história”, frisa Julia Reda, eurodeputada eleita pelo Partido Pirata Alemão, numa publicação do Twitter. Nos últimos anos, Reda, cujo programa assenta em questões relacionadas com a sociedade da informação, tem feito campanha contra a directiva comparando-a com uma “máquina de censura”.
A decisão para começar as negociações será anunciada no começo da sessão plenária do Parlamento Europeu no dia 2 de Julho. Nesta altura, os eurodeputados podem ainda contestar a decisão e exigir que a directiva seja discutida e aprovada no Parlamento.