Marrocos: o talento fundiu-se com a organização
No futebol como na cozinha, muitas vezes basta um olhar distinto, de alguém com uma outra perspectiva, para preparar um prato diferenciador com recurso aos mesmos ingredientes. A actual versão da selecção de Marrocos, apurada pelo génio de Hervé Renard, tem claramente um toque de autor, o dedo de quem percebeu que para esconder defeitos e potenciar virtudes não precisava de uma revolução. Com o técnico francês, a equipa africana juntou organização ao talento. O que já não é pouco.
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No futebol como na cozinha, muitas vezes basta um olhar distinto, de alguém com uma outra perspectiva, para preparar um prato diferenciador com recurso aos mesmos ingredientes. A actual versão da selecção de Marrocos, apurada pelo génio de Hervé Renard, tem claramente um toque de autor, o dedo de quem percebeu que para esconder defeitos e potenciar virtudes não precisava de uma revolução. Com o técnico francês, a equipa africana juntou organização ao talento. O que já não é pouco.
Não teve muitos segredos a selecção marroquina ao longo da fase de qualificação (durante a qual não sofreu um único golo) e também não surpreendeu no encontro de estreia na Rússia. É verdade que o habitual 4x2x3x1 privilegiado por Renard conheceu, frente ao Irão, uma nuance um pouco mais ousada, com o extremo Nordin Amrabat a surgir como lateral (papel que, de resto, não é novo para o jogador do Leganés), mas os princípios de jogo mantiveram-se.
Olhar para Marrocos e vislumbrar um rival sólido do ponto de vista defensivo é, porém, redutor. Mas comecemos por aí, pela organização defensiva. Numa linha de quatro, que opera uma defesa mista nas bolas paradas, o destaque vai para uma dupla fiável de centrais, que se explica em parte pela capacidade de Renard de ver mais além, quando decidiu recuar o médio Romain Saïss (que actua no Wolverhampton no miolo) para o eixo da defesa, para actuar ao lado do inamovível Mehdi Benatia, capitão e líder da equipa.
Ao promissor Achraf Hakimi, habitualmente lateral direito que nesta época se estreou pelo Real Madrid, o técnico tem entregado ultimamente o lado esquerdo, aproveitando a vocação ofensiva e o futebol associativo que promove pelo corredor para gerar triangulações com a estrela da companhia, Hakim Ziyech. Do lado oposto, é o expansivo Nabil Dirar, também ele com um perfil talhado para atacar a profundidade aquando da recuperação da bola, o habitual dono do lugar, assim esteja fisicamente a 100%.
Para além de fortes nos lances aéreos, Benatia e Saïss assumem muitas vezes a saída de bola com passes verticais e de longa distância, que ora procuram directamente o ponta-de-lança de serviço (seja ele El Kaabi ou Khalid Boutaib), ora orientam o jogo para as laterais, onde pontuam Ziyech e Amrabat (ou o talentoso Amine Harit). Quando forçam uma saída a três, é normalmente um dos laterais que encosta, em vez de ser o médio defensivo a baixar.
Este é já o momento da organização ofensiva, que pode também passar por um futebol mais apoiado, sempre que os centrais conseguem ligações fáceis com El Ahmadi ou Boussoufa, nomes que compõem o duplo pivot defensivo marroquino. O experiente médio do Al Jazira é outra das provas da perspicácia do seleccionador, que o “convidou” a baixar uns metros no terreno para, com a sua clarividência, iniciar a construção de forma mais criteriosa e associativa.
Quando chegamos ao meio-campo ofensivo, entramos no domínio da arte, especialmente sempre que Ziyech puxa dos galões. O criativo do Ajax, que aos 25 anos é o expoente máximo da actual geração do futebol marroquino, parte habitualmente do corredor esquerdo para terrenos interiores, à procura de zonas de criação e/ou finalização. E deste esquerdino é sempre de esperar um passe de ruptura ou uma penetração rumo à área, muitas vezes em tabela com o intérprete da posição nove ou com Younès Belhanda.
O número 10 de Marrocos, um “activo” do Galatasaray, tem nos equilíbrios defensivos que promove, no momento da perda, e nos remates de meia distância duas das virtudes, enquanto no flanco direito, com Amrabat, os africanos ganham mais profundidade e critério no cruzamento, ao passo que Harit (outra das opções) promove mais o jogo interior em diagonais.
Uma última nota de alerta para Portugal: as bolas paradas ofensivas marroquinas. Nos livres e cantos (atraem muitas vezes marcações para libertar um jogador para a finalização à entrada da área), nota-se a léguas que há trabalho de laboratório e que os esquemas tácticos estão na ordem do dia para Hervé Renard. Um sinal da evolução registada nos dois últimos anos. Mais um.