A toca do coelho

O diálogo que Spell Reel abre com a história, de Portugal e da Guiné e de África e do colonialismo, é vital.

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São poucos os filmes dos quais possamos dizer que nos continuam a ressoar na cabeça ao longo dos meses. Spell Reel é um desses casos raros, tanto pela sua natureza como pelo seu contexto. Num momento em que documentários como Eu Não Sou o Teu Negro, de Raoul Peck, ou Black Power e A Respeito da Violência, de Goran Hugo Olsson, começam a olhar de outro modo para a História recente — que é também o momento em que os estudos fílmicos e académicos se interessaram pelos conflitos coloniais da segunda metade do século XX —, a abordagem de Filipa César e de uma equipa de cineastas e académicos aos arquivos do cinema militante da Guiné-Bissau é, de algum modo, o filme certo no momento certo. Procurando lançar uma nova luz sobre uma história insuficientemente estudada e explorada, Filipa César tenta perceber o que estes arquivos dizem sobre uma sociedade e sobre um passado que não é conhecido nem sequer pelos próprios. Mas fá-lo injectando uma procura formal que encontra paralelos nas experiências mais abstractas dos video-ensaios de Godard, ou nos travelogues transmutados de Chris Marker — aliás professor dos cineastas guineenses que filmaram a independência.

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São poucos os filmes dos quais possamos dizer que nos continuam a ressoar na cabeça ao longo dos meses. Spell Reel é um desses casos raros, tanto pela sua natureza como pelo seu contexto. Num momento em que documentários como Eu Não Sou o Teu Negro, de Raoul Peck, ou Black Power e A Respeito da Violência, de Goran Hugo Olsson, começam a olhar de outro modo para a História recente — que é também o momento em que os estudos fílmicos e académicos se interessaram pelos conflitos coloniais da segunda metade do século XX —, a abordagem de Filipa César e de uma equipa de cineastas e académicos aos arquivos do cinema militante da Guiné-Bissau é, de algum modo, o filme certo no momento certo. Procurando lançar uma nova luz sobre uma história insuficientemente estudada e explorada, Filipa César tenta perceber o que estes arquivos dizem sobre uma sociedade e sobre um passado que não é conhecido nem sequer pelos próprios. Mas fá-lo injectando uma procura formal que encontra paralelos nas experiências mais abstractas dos video-ensaios de Godard, ou nos travelogues transmutados de Chris Marker — aliás professor dos cineastas guineenses que filmaram a independência.

Spell Reel é um filme-ensaio, sim, mas não está fechado sobre si mesmo. É, antes, um filme que se abre ao espectador, propondo-lhe deixar-se levar por uma viagem pelo tempo e pelo espaço que olha hoje para as imagens rodadas ontem e pergunta o que elas nos dizem: o que elas nos dizem hoje, o que nos mostram de ontem, e o que nos dizem hoje sobre ontem e sobre hoje. Spell Reel é um convite para descobrirmos a história destas imagens e a história de uma comunidade — quase uma “salvação da pátria”, porque estes testemunhos de um tempo histórico estavam à beira de se perder (mais de metade já está, aliás, perdida), e a sua devolução aos guineenses, através de sessões de cinema itinerante, foi para muitos deles o primeiro contacto com um passado que não ficou registado (numa ligação curiosa com O Canto do Ossobó, de Silas Tiny). E as questões que o reencontro com estas imagens levantam estão inscritas na própria natureza do filme: sem procurar explicar, impor ou reescrever, pretende-se apenas mostrar, questionar, investigar, lançar.

Spell Reel pede duas, três, quatro visões para seguirmos todas as portas e pistas que ele abre, com a sensação de que entrámos pela toca do coelho e não sabemos onde vamos sair. Que finalmente ele chegue à estreia comercial é de saudar, mesmo que seja um filme de nicho: o diálogo que abre com a história, de Portugal e da Guiné e de África e do colonialismo, é vital.

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