Lucília Santos e a lição do bumerangue
A Lucília não vestia a camisola do PÚBLICO. Vestia a camisola, as calças e ainda punha um lenço de seda ao peito.
Bumerangue. Vai e volta. Estamos sempre a dizer às crianças que, se partilharem os doces, têm doces “de volta”. Se forem generosos, recebem generosidade “de volta”. Se forem gentis, têm gentileza “de volta”. Agora que a Lucília morreu e me pediram este texto, “bumerangue” foi a primeira palavra que escrevi no computador.
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Bumerangue. Vai e volta. Estamos sempre a dizer às crianças que, se partilharem os doces, têm doces “de volta”. Se forem generosos, recebem generosidade “de volta”. Se forem gentis, têm gentileza “de volta”. Agora que a Lucília morreu e me pediram este texto, “bumerangue” foi a primeira palavra que escrevi no computador.
Não sei bem porquê. Nos 30 anos em que trabalhámos juntas, nunca falámos de bumerangues — e falámos de tudo e mais alguma coisa.
Escrevi-a ainda antes de pensar o que faria sentido dizer num texto para leitores que vêm aqui à procura de notícias, não de notas pessoais sobre alguém que ajudou a construir o PÚBLICO mas cujo nome não conhecem sequer, porque a Lucília Santos era uma mulher dos bastidores, secretária e adjunta da direcção.
Agora que a palavra saiu assim, como se não fosse minha, obriguei-me a pensar nela. E acabei a concluir que a Lucília nos deixou a lição do bumerangue. Que é isto: é importante dar aos outros. E, como o bumerangue raramente falha, a Lucília deu e deu e deu e deu — e foi recebendo de volta. Só podia ser assim.
Dirão os que não a conhecem: lamechices de quem escreve quando um amigo morre. Aceito. Mas não estou a falar de uma colega afável que ajuda os outros. Fazemos anos e estamos fora em reportagem? A Lucília lembra-se e telefona a dar um beijo. Todos os anos, durante 30 anos. Um filho teve febre ontem? A Lucília pergunta no dia seguinte se está melhor. Não estou a falar dos meus filhos. Estou a falar dos 159 filhos das 192 pessoas que trabalham hoje no PÚBLICO, dos jornalistas aos estafetas, passando pelos comerciais e administradores, e também dos filhos dos 500 colegas que cá trabalharam no passado. Houve uma discussão? A Lucília modera discretamente, suavizando as pontas bicudas. Alguém anda triste. A Lucília repara. Alguém anda cansado. A Lucília leva um pratinho de cerejas. Alguém anda impaciente, a Lucília ouve. Há más notícias, a Lucília é solidária e corajosa. Há boas notícias? A Lucília traz uma tarte de requeijão. Alguém escreveu um texto brilhante? A Lucília é a primeira a elogiar. O PÚBLICO foi melhor e mais rápido? A Lucília é a primeira a dizer, porque é a primeira a ler a concorrência e o próprio PÚBLICO, de fio a pavio, todos os dias. O PÚBLICO foi ultrapassado por outro jornal? É a primeira a dizer “amanhã vamos ser nós”. A Lucília não vestia a camisola. Vestia a camisola, as calças e ainda punha um lenço de seda ao peito.
Por outras palavras: a Lucília deu humanidade e ternura a esta máquina stressada, competitiva, frenética e meio louca que é um jornal diário. É fácil sermos atentos e generosos com uma pessoa por dia. Sermos assim, tantos anos, com tantas pessoas ao mesmo tempo, no meio de tanta correria, é só para alguns.