“Acesso à cultura” ou produção cultural?
Em certo setores da cultura ainda não conseguimos descolar do paradigma de há mais de 50 anos.
Promover o “acesso à cultura” tornou-se um lugar-comum do linguajar político. Não há partido nem governo que não inscreva a consigna no seu programa. Está nela implícita uma ideia um tanto nebulosa de “cultura”, qual pronto-a-vestir que se trata de franquear ao maior número possível de potenciais “consumidores”. É certo que se fala também de “criação” e de “criadores”, mas nem por isso se esbate o foco principal do campo semântico: o “acesso à cultura”.
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Promover o “acesso à cultura” tornou-se um lugar-comum do linguajar político. Não há partido nem governo que não inscreva a consigna no seu programa. Está nela implícita uma ideia um tanto nebulosa de “cultura”, qual pronto-a-vestir que se trata de franquear ao maior número possível de potenciais “consumidores”. É certo que se fala também de “criação” e de “criadores”, mas nem por isso se esbate o foco principal do campo semântico: o “acesso à cultura”.
Se o foco é esse, não admira que se tenda para um desequilíbrio estrutural entre o investimento na “produção” e o investimento no “consumo” – desequilíbrio particularmente sensível no estado atual da música e das chamadas artes cénicas em Portugal. A míngua de recursos públicos para a cultura e o paradigma dominante de rentabilidade empresarial, que assenta na redução tão drástica quanto possível da massa salarial, não deixam prever uma correção desse desequilíbrio, antes apontam para o seu agravamento. Os gestores culturais sonham, cada vez mais, com um modelo em que, descontados os “custos de suporte” administrativos (onde se incluem naturalmente as suas generosas remunerações e regalias!), a totalidade do orçamento seja exclusivamente destinado a programação. Emprego artístico estável como o exigido por qualquer estrutura de produção artística (grupo ou companhia de teatro ou de ópera, orquestra, etc.) é, para eles, um pesadelo.
Imaginem um Teatro de São Carlos à maneira de outrora, ainda não há muitos anos: que, além de não empregar um ensemble nuclear de cantores nem de fazer funcionar um estúdio de ópera (aliás, previsto nos atuais estatutos), também não tivesse de pagar salários a uma orquestra e a um coro da casa; uma Fundação Gulbenkian que despedisse a orquestra como despediu em tempos o Grupo Gulbenkian de Bailado; uma Casa da Música sem a Orquestra Sinfónica do Porto. Que alívio para os conselhos de administração e que brilharete para diretores artísticos e programadores! Não faltaria quem se vangloriasse de programar mais e melhor... com metade do orçamento! Cumprir-se-ia então, em toda a linha, o ideal dos gestores: o “acesso à cultura” por outsourcing!
Mas, vendo bem, tal não seria senão generalizar um padrão já hoje dominante nas nossas instituições culturais, sejam elas públicas ou privadas: programar na base da produção alheia. As mais abastadas vão ao catálogo das agências artísticas internacionais e compram o êxito acumulado das ofertas disponíveis. O público exulta com essas temporadas de luxo que, em nome do “acesso à cultura”, lhe são servidas a preços subvencionados, muito abaixo do preço de custo – em contraste com os preços de mercado que é preciso pagar por outros “bens de consumo” importados (por exemplo, carros “topo de gama”).
Outro sintoma dos equívocos nesta matéria é o resultado dos recentes concursos de apoio às artes. A confusão entre programação e produção, somada ao facto de o Ministério da Cultura, por erro de enquadramento legal, ter alijado para um júri opções estratégicas de política cultural que só a um governo eleito competem, fez passar a extraordinária mensagem de que o “acesso à cultura” em Portugal pressupõe a liquidação da rede de grupos independentes, enquanto estruturas de produção e emprego artísticos. Como se o princípio da precariedade do emprego e da volatilidade dos projetos fosse, em Portugal, o salvatério das artes!
Nunca a formação média, superior e avançada em música e artes cénicas atingiu indicadores de excelência tão elevados como os atuais, em extensão e qualidade. Escolas superiores, universidades e os seus centros de pesquisa, nesta e noutras áreas artísticas, internacionalizaram-se e fervilham de atividade criativa. E que resposta dão a este estado de coisas os mais poderosos agentes culturais? Não oportunidades de emprego em estruturas de produção consolidadas e estáveis, mas sim o convite à emigração maciça. Preferem ter, por exemplo, meia orquestra (sendo a outra metade recrutada em outsourcing) do que ter uma orquestra inteira, a valer, “topo de gama”. Ou seja: em contraciclo com o valor acrescentado que já geramos e exportamos em tecnologias de ponta, parece que, em certo setores da cultura, ainda não conseguimos verdadeiramente descolar do paradigma de há mais de 50 anos: “topo de gama”... só importado!
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico