A cidade é perigosa para andar a pé e de bicicleta?
A sinistralidade rodoviária mata seis vezes menos europeus do que as doenças diretamente relacionadas com a inatividade física. Mas reduzir o perigo rodoviário é indispensável para aumentar a atividade física. Há duas formas de promover a segurança nas ruas: fechar as pessoas em casa, ou reduzir a velocidade dos carros. Qual será melhor?
Diz-se que “nós fazemos as cidades e depois elas fazem-nos a nós”. A forma como as nossas cidades foram pensadas e construídas ao longo do século XX mudou muito os nossos estilos de vida, a forma como nos deslocamos no dia a dia e, consequentemente, as características da nossa atividade física diária. Hoje podemos passar centenas de horas por ano sentados dentro de um automóvel e há cada vez mais estudos a relacionar o uso do automóvel com a redução considerável da atividade física no nosso quotidiano.
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Diz-se que “nós fazemos as cidades e depois elas fazem-nos a nós”. A forma como as nossas cidades foram pensadas e construídas ao longo do século XX mudou muito os nossos estilos de vida, a forma como nos deslocamos no dia a dia e, consequentemente, as características da nossa atividade física diária. Hoje podemos passar centenas de horas por ano sentados dentro de um automóvel e há cada vez mais estudos a relacionar o uso do automóvel com a redução considerável da atividade física no nosso quotidiano.
Há poucos dias, na cerimónia de lançamento do Plano de Ação Global para a Atividade Física da Organização Mundial da Saúde (OMS), o primeiro-ministro, António Costa, referiu que um dos grandes desafios da atualidade no contexto da promoção da saúde e do desenvolvimento sustentável do país é “fazer de cada rua um local para a prática de uma vida ativa e saudável”. Neste Plano de Ação a OMS recomenda que se dê prioridade aos modos pedonal (andar a pé) e ciclável como forma de deslocação no dia a dia. É uma solução que, combinada com a multimodalidade, faz todo o sentido. É a melhor forma de, simultaneamente, reduzir as mortes causadas por doenças diretamente relacionadas com a inatividade física, pela poluição atmosférica, e tornar as nossas cidades mais seguras para todos.
Há várias barreiras a dificultar este objetivo e é óbvio que a falta de segurança nas ruas das nossas cidades é uma das mais evidentes. Já não é tão óbvio que certas formas de promover a segurança rodoviária podem também ter um efeito perverso. Importa começar pelo nome que damos a este desafio. Desde a invenção do automóvel, foram mortas na estradas e ruas de todo o mundo entre 40 a 60 milhões de pessoas. O termo “segurança” rodoviária é um eufemismo. É de “perigo rodoviário” que devemos falar.
Importa, a seguir, assumir que não podemos aceitar como “inevitável” a sinistralidade grave e mortal, como se nada pudéssemos fazer quanto ao número de automóveis e à sua velocidade. A sinistralidade não é o “preço” que temos de pagar pelo desenvolvimento – os países nórdicos são a prova disso.
Importa ainda pôr de parte ideias feitas que bloqueiam o progresso neste domínio. A mais ineficaz (e, já agora, perversa) é achar que se deve começar por condicionar e “educar” peões e ciclistas. Por outras palavras, que a melhor forma de prevenir a agressão é agir sobre a vítima. Todos sabemos que a origem do perigo rodoviário é o comportamento na condução de veículos pesados e demasiado rápidos. Por isso, a forma mais eficaz de reduzir a sinistralidade é, de facto, condicionar o comportamento dos condutores, nomeadamente reduzir a velocidade.
No debate público sobre a “segurança” rodoviária é frequente colocar-se a ênfase nos números absolutos – como a redução do número de mortos e feridos na estrada. Mas temos de olhar com igual atenção para outros elementos do sistema, como a qualidade dos espaços públicos ou a forma como as rotinas de vida são alteradas por essas diretivas. Veja-se o caso das crianças.
Portugal é um dos países com mais crianças obesas na Europa e sabemos que passam horas fechadas em casa, em boa parte, porque as ruas são demasiado perigosas. Ficam sem acesso a oportunidades essenciais para o seu desenvolvimento: a autonomia, o contato com a natureza, com o seu bairro e com toda a realidade ambiental e sociológica que é crucial para a sua formação como cidadãos.
Como mudar esta situação? A recomendação do uso de coletes refletores iria pôr mais crianças a andar na rua? Obrigar ao uso de capacete iria pôr mais crianças (e adultos) a andar de bicicleta? Ou, como mostram vários estudos, seria uma barreira para o uso da bicicleta na população? Alguma destas medidas iria, de facto, aumentar a segurança das crianças e o descanso dos pais? Na verdade, é hoje consensual que reduzir as velocidades e os volumes dos veículos motorizados é o caminho do futuro.
Para melhorar a segurança de todos, temos de reduzir radicalmente o número de automóveis nos nossos centros urbanos e a sua velocidade, mas também assegurar um espaço público que garanta uma acessibilidade segura e sustentável para todos. Para conseguir esse desígnio as nossas ruas têm de ter passeios mais largos e confortáveis, mais árvores e bancos para nos sentarmos. Os atravessamentos das ruas têm de ser mais seguros, reduzindo as velocidades dos veículos motorizados, aumentando os tempos de verde para os peões e tornando as passadeiras visíveis e acessíveis a todos – entre várias outras medidas.
A promoção dos modos suaves e ativos (andar a pé e de bicicleta), para além de tornar as nossas cidades mais seguras, tem enormes vantagens económicas, sociais, ambientais e de saúde. Em síntese, fomentar a qualidade de vida e a sustentabilidade das cidades, incluindo a promoção da prática de atividade física, passa necessariamente por reduzir o perigo rodoviário. Numa democracia e Estado de direito, é admissível termos receio de andar a pé ou de bicicleta nas nossas cidades?
Mário J. Alves, Secretário Geral da International Federation of Pedestrians, Presidente da Estrada Viva Liga de Associações pela Cidadania Rodoviária, Mobilidade Segura e Sustentável
Pedro Homem Gouveia, Arquiteto
Pedro Teixeira, Professor da Faculdade de Motricidade Humana, Universidade de Lisboa e Diretor do Programa Nacional para a Promoção da Atividade Física, Direção-Geral da Saúde