Quando faltam as “boas notícias”
Vivemos uma época em que domina a incerteza, bem resumida na expressão “já não entendo este mundo”. Não é um exclusivo dos jornalistas, é um problema partilhado pelos analistas. Está a democracia liberal em risco? Há quem aconselhe ler mais História para relativizar o “presentismo” que marca a nossa visão.
1. A semana internacional não se resumiu a Donald Trump, na cimeira do G7 e em Singapura. Na Europa há correntes em movimento, umas aparatosas, outras subterrâneas. São escassas as “boas notícias” (depende do ponto de vista). Os jornalistas são forçados a ser “presentistas”, a focar a atenção no presente. O tom muda consoante os ciclos. Basta comparar a euforia dos anos 1990 com a actual década. É a época que faz deles Cassandras ou angélicos optimistas.
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1. A semana internacional não se resumiu a Donald Trump, na cimeira do G7 e em Singapura. Na Europa há correntes em movimento, umas aparatosas, outras subterrâneas. São escassas as “boas notícias” (depende do ponto de vista). Os jornalistas são forçados a ser “presentistas”, a focar a atenção no presente. O tom muda consoante os ciclos. Basta comparar a euforia dos anos 1990 com a actual década. É a época que faz deles Cassandras ou angélicos optimistas.
Por vezes procuram questionar o imediatismo, procurando um fio condutor a partir da História, outras interrogando autores que tentam fazer prospectiva. Mas é dominante o sentido da incerteza, concisamente retratado na expressão “já não entendo este mundo”. Não é um exclusivo dos jornalistas, é um problema partilhado pelos analistas.
“A recente ascensão de forças e líderes iliberais é certamente preocupante. Ainda é muito cedo para escrever o obituário do liberalismo enquanto teoria das relações internacionais, da democracia liberal como sistema de governo ou da ordem liberal como estrutura de suporte da política global.” Esta passagem é retirada de um artigo dos analistas americanos Daniel Deudney e John Ikenberry na próxima Foreign Affairs (Julho-Agosto).
E deixam um aviso aos colegas analistas: “As terríveis predições de hoje ignoram os sucessos do passado [da democracia liberal]. Padecem de um presentismo que os cega.”
Seguem-se algumas notícias. Cabe ao leitor avaliar se são “boas” ou “más”.
2. Os eurocépticos de todas as cores — extrema-direita, nacionalistas, populistas xenófobos ou “democratas iliberais” — estudam a sua estratégia para aproveitar uma conjuntura política favorável e conquistar posições no Parlamento Europeu nas eleições de 2019. Preparam uma batalha à escala do continente.
O italiano Matteo Salvini, líder da Liga e agora ministro do Interior, é a nova vedeta. As alianças não são simples e desenrolam-se num vasto tabuleiro. Não se trata apenas de juntar as extremas-direitas xenófobas, simbolizadas por Marine Le Pen, Salvini ou Herbert Kickl, líder do Partido da Liberdade Austríaco (FPÖ) e actual ministro do Interior de Viena, acompanhados pelos correligionários belgas, holandeses, alemães ou escandinavos. Uma primeira grande aposta é a articulação com o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, e através dele com o grupo de Visegrado.
O eurodeputado Nicolas Bay, da Frente Nacional de Le Pen, anuncia “uma polarização entre nacionalismo e cosmopolitismo, entre globalistas e patriotas”. Explica: “Penso que estamos a viver uma autêntica recomposição política da Europa”, com um afrontamento entre os “mundialistas” e os que defendem “a nação, o povo e a sua identidade”, ou seja, “o sangue, a terra e a história”.
A imigração é o grande tema do momento mas, do ponto de vista estratégico, a extrema-direita aposta no debate identitário: “O eixo protecção da identidade
dissolução da identidade será decisivo nas próximas décadas”, dizem citando o ideólogo francês Renaud Camus. Apostam em aproveitar o declínio do grupo socialista para se tornarem a segunda força do PE. “Dentro de dez anos, a UE será praticamente irreconhecível”, aposta Bay.
Para alguns, é uma “fanfarronada”. Para outros, puro “realismo”.
3. Esta semana estiveram reunidos em Berlim Horst Seehofer, ministro do Interior alemão, e o chanceler austríaco, Sebastian Kurz (na foto), para discutir a imigração. Seehofer, o homem-forte da União Social-Cristã (CSU) e da Baviera, é um radical opositor da política migratória de Angela Merkel, tanto no Governo como na democracia-cristã. Kurz aliou-se à extrema-direita e colocou Kickl na poderosa pasta do Interior. Antes da reunião, falaram por telefone com Salvini.
Objectivo? Kurz propõe a criação de “um eixo de países destinado a lutar contra a imigração ilegal”. Seehofer vê a proposta com bons olhos, o que constitui um desafio a Merkel.
Kurz tem ainda outra ideia. Sabe-se que a cimeira europeia de 28-29 de Maio, que deveria redefinir a política de imigração, vai falhar. No dia 1 de Julho, a Áustria assumirá presidência europeia. Seria então Viena a conduzir a revisão da política de imigração.
4. Na Itália não há grandes novidades, há uma confirmação. Aproveitando a crise do Aquarius, Matteo Salvini assumiu-se como efectivo chefe do Governo (ver PÚBLICO de 12 de Junho). Nas eleições administrativas de domingo passado, bateu claramente o Movimento 5 Estrelas (M5S), seu aliado no Governo. O primeiro-ministro, Giuseppe Conte, tem-se revelado até agora uma inexistência política.
Luigi di Maio, “chefe político” do M5S, parece um principiante perante o experiente Salvini. A antipolítica está a revelar-se um fiasco na condução política do Governo. Escreve o politólogo Piero Ignazi: “O período feliz da oposição tout court, da recusa da direita e da esquerda, do ‘governaremos sós’, acabou. Agora é o tempo das escolhas. Nunca mais serão fáceis nem indolores.” Perante o vazio dos outros, a aliado minoritário assume a liderança não só na imigração mas também na política económica e na internacional. Não será demagógico falar no “Governo de Salvini”. Aguarda-se a resposta do M5S.
5. Termino com um ponto delicado em que nada é claro: o factor americano. Passo por cima da cimeira do G7. A América dispõe de duas poderosíssimas “alavancas” perante a Europa: o seu papel central no sistema financeiro mundial e a dependência europeia em matéria de segurança.
Mas há um outro plano: Washington joga abertamente na divisão da UE. “A Administração Trump não tem uma estratégia nem um objectivo ideológico na Europa e, provavelmente, não os quer ter”, escreve o americano Jeremy Shapiro, hoje analista do European Council on Foreign Relations. Mas é legítima a desconfiança de que a Administração Trump “procurará alimentar a vaga populista que está a abalar a política europeia”. Tal como incentiva a fragmentação da UE através dos eurocépticos do Leste. De menor importância será a acção de Steve Bannon, em campanha para federar as extremas-direitas e os nacionalismos europeus.
De resto, Trump não precisa de intervir. É um herói dos populistas europeus que são estimulados pela sua simples existência. Marine Le Pen, Matteo Salvini, Beppe Grillo ou Viktor Orbán exultaram com a sua vitória em 2016. Grillo entrou em delírio: “É a deflagração de uma época. É o apocalipse da informação, da TV, dos grandes jornais, dos intelectuais e dos jornalistas.” Era a vitória do bem sobre o mal.