Incêndios abriram brecha na coligação de palácios

As tragédias de 2017 afectaram a relação entre o Presidente e o primeiro-ministro. A intervenção de Marcelo foi incisiva e Costa ficou à defesa. Uma repetição da tragédia poderá pôr-lhe fim? Louçã pensa que não, Mendes não tem dúvidas que sim. O estilo presidencial está definido e pode repetir-se no futuro, avisa Costa Pinto.

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Reuters/ADRIANO MACHADO

Os incêndios de 2017 mudaram a relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. É possível que seja mais uma percepção do que uma realidade e que não tenha havido uma inversão profunda na cooperação estratégica, como nos dizem diferentes analistas, mas é um facto que os incêndios se tornaram no maior “irritante” das relações entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Uma repetição da tragédia poderá criar uma crise política?

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Os incêndios de 2017 mudaram a relação entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. É possível que seja mais uma percepção do que uma realidade e que não tenha havido uma inversão profunda na cooperação estratégica, como nos dizem diferentes analistas, mas é um facto que os incêndios se tornaram no maior “irritante” das relações entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa. Uma repetição da tragédia poderá criar uma crise política?

A noite de 17 de Junho foi dramática. Os incêndios na zona centro tinham-se descontrolado e as televisões começam a falar em possíveis mortes. Marcelo decide pôr pés ao caminho, contrariando as indicações da GNR, e dirige-se até ao posto de comando das operações, onde já se encontra o secretário de Estado da Administração Interna. O abraço que dá a Jorge Gomes à chegada e as lágrimas de desespero deste, com transmissão em directo pelas televisões, são o prenúncio do que estava para vir.

O Presidente está no terreno desde o primeiro momento, o primeiro-ministro acompanha à distância as operações na sede da Protecção Civil, em Carnaxide. É Marcelo quem faz as primeiras declarações e são de tranquilização pública: “Não há nem falta de competência, nem falta de capacidade, nem falta imediata de resposta”, declara por volta da 1 hora da manhã. Ainda os mortos não estavam contabilizados.

“Há duas fases diferentes nas relações entre o Governo e o Presidente durante o combate aos incêndios”, analisa Francisco Louçã, fundador do Bloco de Esquerda e conselheiro de Estado de Marcelo. “Nos primeiros dias, a presença do Presidente e as suas declarações, incluindo as declarações enfáticas sobre a resposta aos incêndios registaram uma posição institucional: eu estou aqui, estamos todos aqui. Pareceu-me compreensível, de tranquilização pública e até motivação das forças no terreno, houve um apoio claro ao Governo e às estruturas intermédias. O Presidente manteve uma atitude neutra em relação às autoridades durante o primeiro impacto”, afirma.

Na noite seguinte, numa declaração ao país, Marcelo já fala em tragédia e em apuramento de responsabilidades. E desde então nunca mais deixou o assunto: a sua agenda não-escrita passou a ter como destino quase diário incursões aos concelhos ardidos, arrastando atrás de si a comunicação social. Fez milhares de quilómetros, visitou feridos e famílias de vítimas mortais, sempre em contacto directo com os autarcas, com quem combinava as visitas pouco antes de lá chegar. As imagens do Presidente a abraçar pessoas que tinham perdido quase tudo tornaram-se icónicas. Marcelo estava no centro do problema e tornou-se o rosto da esperança das populações afectadas. O chefe de Estado reforçava a sua popularidade num tema escaldante para o Governo.

Pelo meio, o assalto a Tancos acentuou as tensões entre Belém e São Bento, com o Presidente a surgir mais uma vez - ou ainda mais - como locomotiva do Governo. A 14 de Outubro, na altura em que foi conhecido o relatório da Comissão Técnica Independente, Marcelo volta a Pedrógão e declara que “não há tempo a perder, ou melhor, já perdemos todos tempo demais”, lembrando que “Portugal aguarda com legítima expectativa as consequências que o Governo irá retirar de uma tragédia sem precedente na história democrática”.

O "novo ciclo"

Ninguém podia imaginar que no dia seguinte a tragédia se repetiria, agora numa área geográfica mais alargada, por toda a região centro. Nessa altura, Marcelo já não se pôs a caminho pelo meio das chamas. Fechou-se em Belém e esperou que o primeiro-ministro tomasse a dianteira. Costa fala ao país na noite de 16 de Outubro e Marcelo não ficou satisfeito. 24 horas depois é ele quem fala à nação a partir de Oliveira do Hospital, um dos concelhos mais atingidos pela segunda vaga de incêndios mortais. Proclama que se exige um “novo ciclo”, o qual, “inevitavelmente obrigará o Governo a ponderar o quê, quem, como e quando serve este ciclo”. Impõe uma remodelação e o Governo não gosta.

“Foi um discurso muito crítico, o Presidente terá concluído que as condições políticas da ministra se tornaram insustentáveis e assumiu uma atitude mais confrontacional”, avalia Louçã. “O Governo teve uma gestão política muito difícil e nalguns casos muito desastrada, sobretudo porque percebeu tarde que tinha de substituir a ministra. E mais tarde deu a entender, por fontes anónimas, que o Presidente já sabia que a ministra se ia demitir e teria antecipado esse processo”.

A 26 de Outubro, o PÚBLICO escreve em manchete: “Governo chocado com Marcelo: ‘as coisas estavam combinadas’”. O Presidente responde a partir dos Açores: “Chocado ficou o país com esta segunda tragédia”. Se o discurso de Marcelo tinha sido um murro na mesa, as ondas de choque entre Belém-São Bento pareciam ter vindo para durar e deixar marcas profundas. Os analistas, no entanto, divergem na apreciação desse momento e das suas consequências.

O professor de Ciência Política António Costa Pinto considera que os incêndios não alteraram a essência as relações Presidente-Governo, antes puseram em evidência três factores dessa relação que “eram previsíveis”. “Em primeiro lugar, a grande antecipação autónoma do Presidente em relação ao tema, não só antecipando-se mas encontrando ali uma relação com a sociedade civil muito forte. Em segundo lugar, a intervenção quase directa, no sentido de co-intervenção com a elite ministerial e entrando quase no processo de co-decisão visível”. É o primeiro a chegar ao local, em Junho, logo a seguir ao secretário de Estado, e é ele quem dá ordem de marcha à ministra da Administração Interna em Outubro. Eis o terceiro ponto: “Não é inédito, mas foi aquele condicionamento público, por parte do Presidente da República, sobre a actuação de um ministro que deu origem à remodelação governamental”.

“Não sou favorável à ideia de uma alteração de fundo das relações entre ambos, primeiro era a lua de mel, depois deixou de ser”, diz Costa Pinto. O que há aqui é a erupção de um acontecimento que demonstra cabalmente um estilo presidencial que poderá repetir-se no futuro e perante acontecimentos diversos, com este governo ou com outro”, defende António Costa Pinto. “O mobil de intervenção formal e informal do Presidente já estava, no fundamental, anunciado. Mas ficou demonstrado, exemplificado”, sublinha.

Dois conselheiros de Estado, Francisco Louçã e Luís Marques Mendes, também não vislumbram nenhuma ruptura nas relações Belém-São Bento, antes um pico de crispação que não terá consequências muito graves em situações normais.

Francisco Louçã distingue dois níveis, o institucional e o subjectivo. No primeiro, considera que não houve nenhuma alteração significativa: “O Presidente continua no mesmo quadro de análise política, no sentido de entender que a maioria não vai desaparecer e que a oposição é fraca e vai ter problemas. Por isso, sustenta a solução institucional que existe no Parlamento, não cria conflitos com ela”, considera. E ao nível pessoal, embora considere natural que haja “alguma alteração”, também não vislumbra nenhuma ruptura. “Há algum calculismo nesta relação de ambas as partes, pois ambos beneficiam desta parceria institucional”.

Marques Mendes concorda quando diz que Marcelo e Costa “fazem o esforço de manter uma boa relação institucional, primeiro porque é bom para o país, depois porque é bom para ambos”. Mas salienta que o facto de as relações estarem normalizadas não significa que tenham a mesma visão sobre as coisas: “Não têm, eu até diria que na maior parte dos casos têm visões diferentes, desde o início. O primeiro-ministro tem uma visão mais tradicional, dizendo que se surgir um problema o governo lá estará para resolvê-lo. O Presidente valoriza muito esta situação, enquanto o primeiro-ministro não lhe dá esta carga tão decisiva”.

"Haverá incêndios"

A verdade é que o chefe de Estado nunca mais tirou a questão da sua agenda e da agenda política, colocando pressão sobre o Governo, senão mesmo colocando-o sob condição. Já em Maio, em entrevista ao PÚBLICO, fez mais uma declaração muito forte quanto à insustentabilidade política de uma reprise da tragédia: “Voltasse a correr mal o que correu mal no ano passado, nos anos que vão até ao fim do meu mandato, isso seria, só por si, no meu espírito, impeditivo de uma recandidatura”.

Mendes e Louçã têm leituras antagónicas desta sentença. Para o bloquista, não passa de uma “declaração desastrada a muitos títulos”, desde logo porque considera que “serviu para o Presidente declarar que está a pensar na reeleição, o que é muito óbvio, mas é estranho que o faça no contexto de uma negativa condicional. Não são os incêndios que vão determinar se é candidato ou deixa de ser”, considera.

Além disso, diz Louçã, “haverá incêndios”, ainda que “a possibilidade de haver aquela dramatização seja pequena”. “Mas desastres podem ocorrer sempre. E a possibilidade de haver algum Presidente a ameaçar o Governo de demissão se ocorresse um desastre natural não cabe na cabeça de ninguém”.

Já para Marques Mendes, foi isso mesmo que Marcelo colocou em cima da mesa, de forma clara e em dois planos: “No plano preventivo, para que se faça tudo o que há para fazer, depressa e bem, para que tragédias não se repitam. No plano político, ao dizer que se uma situação destas se repetir é tão dramático que ele próprio não se recandidata, está a dizer que o primeiro-ministro provavelmente tem de se demitir. Não vale a pena o primeiro-ministro dizer que não se demite, porque quem o demite é o povo. Se acontecesse uma tragédia semelhante às que aconteceram no ano passado, eu acho que o primeiro-ministro escusava-se mesmo de se submeter a votos. Estava demitido, ponto”, considera o social-democrata.

“Quem olha para a dramatização do discurso politico para encontrar nele uma leitura de grande impacto social não percebe o que se passa no país”, contrapõe Francisco Louçã, dando como exemplo as autárquicas: “O PS arrasou nas eleições, depois do drama dos incêndios [de Pedrógão], em que tinha mostrado fragilidades muito significativas no dispositivo de acção do Governo e até na sua gestão política. Mas isso não teve nenhum efeito sobre as tendências de fundo. O país sofreu, chorou os acontecimentos mas votou nos candidatos que queria. O que quer dizer que um contexto destes em pequeno e em outras circunstâncias no Verão de 2018 ou de 2019 não terá nenhum eleito significativo nas europeias ou nas legislativas”.

São coisas diferentes, contra-argumenta Mendes: “As autárquicas foram depois da primeira [tragédia], se tivessem sido depois da segunda, já as coisas teriam sido diferentes. Com a carga dramática que o Presidente colocou nesta situação, se o primeiro-ministro não se demitisse perante uma terceira tragédia, chegava às eleições e o povo demitia-o. Seria uma situação em que ele ou se demitia por ele próprio, ou seria demitido pelo povo”.