Telma Tvon trouxe a voz da juventude negra portuguesa para o romance

Amante de literatura, não encontrava obra que reflectisse a sua realidade. E assim nasceu Um Preto Muito Português, retratos da juventude negra dos subúrbios de Lisboa e de quem passa a vida a ser questionado: “De onde és?”

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NUNO FERREIRA SANTOS

Quando criou o protagonista do seu romance, Telma Escórcio da Silva seguiu opções menos óbvias: escolheu um homem, e ela é mulher; colocou-o como descendente de cabo-verdianos, e ela nasceu em Angola. “Achei que, se fosse uma mulher, muita gente ia achar que estou a falar da minha história”, conta.  

Rapper, Telma Tvon — como assina — escreveu Um Preto Muito Português depois de numa noite ter começado a rabiscar uma canção até se dar conta de que não conseguia parar. A música tinha o nome que dá título ao livro e sintetiza muito sobre as pessoas em quem se inspirou. É a história dela, mas também não é. Telma é alguém que “no papel” se sente “uma ‘preta portuguesa’, mas, na vivência, uma imigrante”, conta-nos nesta conversa no ISCTE-UL, onde fez mestrado em Serviço Social depois da licenciatura em Estudos Africanos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e onde esteve quase a terminar o doutoramento em Sociologia.

Romance dividido em capítulos, como “Quem sou eu?”, “Não sabes nada sobre nada”, “Xê Budjurra não fala política”, tem aventuras de amor e desamor, brigas, saídas à noite com amigos, gravidezes na adolescência, histórias com a polícia e tanta coisa que se passa nas vidas de jovens adultos, rapazes e raparigas.

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Rapper, Telma Tvon — como assina — escreveu Um Preto Muito Português depois de numa noite ter começado a rabiscar uma canção até se dar conta de que não conseguia parar NUNO FERREIRA SANTOS

Centra-se no quotidiano da juventude negra que vive nos subúrbios de Lisboa, na Margem Sul ou na linha de Sintra, e é talvez o primeiro retrato desta realidade em romance, escrito por uma portuguesa negra, com ironia e humor.  Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida, por exemplo, não fala do mesmo universo de pessoas, nem faz um zoom tão explícito às questões do racismo que atravessam o quotidiano de uma pessoa negra em Portugal como Telma Tvon o faz aqui. Aliás, o título é bem um reflexo do estilo que a autora assume na escrita: vai directo ao assunto para jogar com os clichés e os preconceitos. Telma Tvon recorreu a uma palavra com uma forte carga negativa — “preto” —, porque “a ideia era mesmo chocar”, explica. “A palavra ‘preto’ vem para ofender. Então decidi usar e dar a volta: é um preto muito português, com todo o orgulho inerente a isso. Quem escreve nas paredes não escreve ‘Negro vai para a tua terra’, escreve ‘Preto vai para a tua terra’.”

O título confronta também a idealização de um país homogeneamente composto por brancos, o preconceito que parte do princípio de que um negro não pode ser português. Por isso o romance arranca com a personagem principal a dizer: “Perguntam-se várias vezes donde sou. Sou filho de cabo-verdianos que há muito residem em Portugal. Sou neto de cabo-verdianos que nunca conheceram Portugal.” E vai por aí a fora: “Eu até me licenciei, eu até falo português convenientemente. Ninguém sabe como lidar comigo, não sabe se sou preto o suficiente ou se ando a tentar passar por branco inconscientemente.”

A pergunta cliché sobre a origem

Telma Tvon cresceu em Angola até aos 14 anos, ia lá todas as férias, passou por uma guerra civil, e isso “é completamente diferente de alguém que nasceu aqui” e acaba por ser empurrado para se identificar com um país africano ao qual nunca foi, explica. No livro caricatura a tendência para se perguntar a um negro em Portugal sobre a sua “origem”, criando uma barreira que diz: “Não te estou a aceitar como meu comparras, tens uma cor diferente.”

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NUNO FERREIRA SANTOS

Quem se confronta com estas questões tem de estar “sempre a explicar que é um preto português”, comenta. “Eu tenho mais anos de vida aqui do que em Angola. E, no entanto, essa questão vem sempre. Faz-me confusão quando os meus amigos respondem. Digo logo: ‘Não tens nada que dizer que os teus pais são cabo-verdianos ou são guineenses. Acabou: és tuga!’” Quem lhes pergunta que saia dali com esse TPC: se a pessoa não quis responder, tem de pensar sobre isso.”

Telma absorveu expressões, aprendeu crioulo, grande parte dos amigos identificam-se como cabo-verdianos. Foi, por isso, natural criar uma personagem que fosse cabo-verdiana e dar-lhe o nome de Budjurra.

Há quem lhe pergunte: “Ah, escreveste isto a pensar em mim?” Porque ela vai buscando influências “daqui e dali”, dos amigos. “Budjurra é alcunha para cabo-verdiano, como o santomense é ‘santola’, o angolano é ‘mangope’, o moçambicano é ‘moçambas’ e o guineeses é ‘guitarra’. Achei simbólico esse preto muito português ter essa alcunha, porque é um filho de cabo-verdianos que nunca esteve em Cabo Verde.” 

Estas são histórias de aventuras e também funcionam como diário da vida personagem, das suas angústias e do modo como observa a discriminação acontecer à sua volta.

A linguagem é coloquial. Telma usa muito calão e esta é uma escrita que fala. É ficção, mas documenta, com episódios e personagens, o que acontece a centenas de jovens que tiram um curso superior e acabam num call center; são os únicos negros da turma e são objecto dos olhares de desconfiança quando desaparece alguma coisa; são interpelados pela polícia e levados para a esquadra quando deviam ir para o hospital; têm encontros com skinheads que acabam em ameaças físicas.   

Muita da acção de Um Preto Muito Português passa-se nas periferias da Área Metropolitana de Lisboa. Telma Tvon queria centrar-se nas pessoas que facilmente “se tornam invisíveis”. “Se não é alguém fashion, um cantor da moda, um desportista, parece que aquelas pessoas não têm representação. Porque é que, por exemplo, quase ninguém fala das senhoras da limpeza? Quando fui estudar Sociologia, falava-se numa perspectiva meramente de dados, eram 15 pessoas enfiadas numa estatística. Onde está a senhora Isabel que tem cinco filhos e sai de casa às 4h?”

Como não encontrava as histórias das senhoras Isabel e dos Budjurras, quis colmatar essa lacuna. E inevitavemente trouxe as questões da discriminação. “Resolvi escrever sobre estes temas porque sentia que havia grande carência. Adoro ler, procurava imensa literatura onde não revia a vida das pessoas. Eu via estatísticas, lia contos, fábulas e nenhum sobre o qual pensasse: isto é a vida daquela senhora do Bairro 6 de Maio, daquele rapaz de Monte Abraão, daquela miúda que conheci na Arrentela. Eu própria, sendo afectada por questões raciais, por mais que quisesse falar de outras pessoas tinha de falar sobre isso. Tentei dar a volta, não falar de mim, mas ao mesmo tempo estou a falar de mim. Isto é uma questão de calçar os sapatos dos outros. Se o Joaquim em Belas está a passar por estas situações, eu, Telma, mulher negra, identifico-me com isso.” Acrescenta: “E não é preciso a pessoa ser negra para sentir a dor do outro.”

Rapper em meio masculino

Assistente social neste momento, Tvon já teve dezenas de empregos, como em assistência de back office, que acumulava com os estudos. Foi das poucas mulheres no rap em Portugal, onde começou pelos 16 anos. Juntava-se com as amigas em casa umas das outras, ia a concertos de “grandes referências” — aliás, a personagem Budjarra fala em nomes como Chullage, a quem presta homenagem.

Fez parte das Backwords, com Lady, LG, Zau, das Hardcore Click e por fim, com Geny, das Lweji. Eram mulheres num meio predominantemente masculino onde ouviam coisas como: “Para mulheres até cantam bem.” Foi uma época sobre a qual diz: “Não troco por nada. Havia grande comunhão, saíamos da linha de Sintra para ir para a Moita, para o Barreiro ver o concerto dos grupos de lá, e puxarmos uns pelos outros.”

Nunca parou de escrever, mas parou de gravar. Olhando para trás, sente que durante anos andou “meio adormecida” por pensar que não tinha legitimidade para falar de certas coisas. “Deixava tudo um bocado por cima, por insegurança. Quando comecei a fazer voluntariado, percebi que posso fazer coisas mais práticas. E nessa altura ganhei consciência de que temos de fazer aquilo que os nossos familiares não conseguiram fazer. Não podemos dizer que nos deram a oportunidade de vir para aqui e por isso não devemos fazer barulho. Já não é assim: as pessoas têm direitos, trabalham que se fartam.”

Leitora de Chimamanda Ngozi Adichie, Paulina Chiziane, Pepetela, Mia Couto, José Luís Peixoto, Ondjaki, Kalaf, entre outros, ao primeiro livro Tvon não se vê como escritora, mas como contadora de histórias. “Talvez quando tiver três ou quatro livros!”, ri.

Tem estado a trabalhar no próximo romance. Mas esperemos que seja publicado por outra editora, porque é inaceitável que a Chiado Editora tenha posto a circular Um Preto Muito Português sem fazer a revisão de texto que merece — é um desrespeito pela autora e pelos leitores.