As migrações em massa, o retrocesso da democracia liberal e a desintegração europeia
No caso das migrações em massa, a União Europeia anda à deriva no meio de dois populismos. Um, o mais óbvio e agressivo, é um populismo xenófobo. O outro, menos evidente mas também nocivo, é um populismo humanitário.
1. Se uma potência externa inimiga quisesse encontrar uma forma de descredibilizar as democracias liberais e fracturar a União Europeia dificilmente encontraria algo melhor do que projectar migrações em massa sobre esta. Mais do que qualquer outro problema que a União enfrenta hoje, e são muitos e difíceis, este tem o potencial de provocar danos de tal envergadura que podem comprometer seriamente — ou levar mesmo a reverter — o processo de integração europeia tal como o conhecemos. A saída britânica da União Europeia, onde as questões migratórias tiverem um peso decisivo, foi um aviso do que pode acontecer. O recente caso do navio Aquarius, usado por duas Organizações Não Governamentais (ONG) — a Médicos Sem Fronteiras e SOS Mediterrâneo — para resgatar migrantes no Mediterrâneo, é agora a ponta mais visível deste problema extraordinariamente complexo. Permanece insolúvel há longos anos, provocando um mal-estar profundo em vários Estados-membros e um crescente ressentimento contra a União Europeia, paradoxalmente por razões antagónicas — uns acham que vai longe de mais nas obrigações de acolhimento que quer impor, outros que fica muito aquém do que devia fazer. Ultimamente colocou vários Estados do Sul da Europa (a Itália, Malta, França e Espanha), os mais expostos à vaga migratória, em conflito directo entre si. Na Alemanha, ameaça partir a coligação de governo colocando o Ministro do Interior, Horst Seehofer, o líder dos democratas cristãos da Baviera (CSU), em conflito com Angela Merkel. Vale a pena olhar melhor para as suas múltiplas facetas e a engrenagem que o alimenta.
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1. Se uma potência externa inimiga quisesse encontrar uma forma de descredibilizar as democracias liberais e fracturar a União Europeia dificilmente encontraria algo melhor do que projectar migrações em massa sobre esta. Mais do que qualquer outro problema que a União enfrenta hoje, e são muitos e difíceis, este tem o potencial de provocar danos de tal envergadura que podem comprometer seriamente — ou levar mesmo a reverter — o processo de integração europeia tal como o conhecemos. A saída britânica da União Europeia, onde as questões migratórias tiverem um peso decisivo, foi um aviso do que pode acontecer. O recente caso do navio Aquarius, usado por duas Organizações Não Governamentais (ONG) — a Médicos Sem Fronteiras e SOS Mediterrâneo — para resgatar migrantes no Mediterrâneo, é agora a ponta mais visível deste problema extraordinariamente complexo. Permanece insolúvel há longos anos, provocando um mal-estar profundo em vários Estados-membros e um crescente ressentimento contra a União Europeia, paradoxalmente por razões antagónicas — uns acham que vai longe de mais nas obrigações de acolhimento que quer impor, outros que fica muito aquém do que devia fazer. Ultimamente colocou vários Estados do Sul da Europa (a Itália, Malta, França e Espanha), os mais expostos à vaga migratória, em conflito directo entre si. Na Alemanha, ameaça partir a coligação de governo colocando o Ministro do Interior, Horst Seehofer, o líder dos democratas cristãos da Baviera (CSU), em conflito com Angela Merkel. Vale a pena olhar melhor para as suas múltiplas facetas e a engrenagem que o alimenta.
2. Previamente, há uma questão importante de terminologia a esclarecer. A palavra migrante, um termo neutro, é a mais adequada para este debate onde se misturam, de forma inconsciente, ou deliberada, realidades distintas — refugiados e migrantes económicos — e muita linguagem emotiva que tende a confundir mais do que a esclarecer. Convém clarificá-las adequadamente. Um refugiado é alguém que foge de países devastados pela guerra, ou de perseguições políticas, religiosas ou étnicas, as quais ameaçam a sua vida e integridade física. O refugiado está abrangido pela Convenção das Nações Unidas de 1951 e pelo seu Protocolo adicional de 1967, completado pela legislação da União Europeia e dos Estados-membros sobre esta matéria. Quanto ao migrante económico, é uma pessoa que está à procura de uma vida melhor, saindo de um país onde não tem perspectivas de vida, tipicamente devido à pobreza e ao subdesenvolvimento. Mas ao contrário do caso dos refugiados, não existe uma obrigação legal internacional de acolher migrantes económicos. No campo dos princípios, é fácil perceber que estes dois casos são diferentes e podem — ou até devem — ter tratamentos diferentes pelos Estados que são confrontados com vagas migratórias. Na prática, o primeiro grande problema é efectuar essa separação de forma correcta e conseguir actuar politicamente em consonância.
3. O caso do navio Aquarius — que ficou no meio de um dramático jogo do empurra entre Itália e Malta e de uma troca de acusações entre e a Itália e a França — mostra a extrema delicadeza humanitária e a enorme dificuldade política destas situações. Entre as mais de 600 pessoas recolhidas pelo Aquarius, por estarem em risco de naufrágio ou de se afogarem no Mediterrâneo, quantas são migrantes económicos e quantas são refugiados? Provavelmente, tendo em conta a partida das costas da Líbia e a origem africana da generalidade destes, serão na grande maioria migrantes económicos. Mas ninguém sabe responder com rigor nesta altura. Só após o seu desembarque e acolhimento num Estado da União Europeia é possível fazer essa triagem. Neste caso, será a Espanha, onde o novo governo, entretanto, se prontificou a acolhê-los em Valência (Para além do louvável gesto humanitário, resta saber, em termos mais políticos, que impacto secundário isso terá no tráfico de migrantes e se Espanha não será percebida, de futuro, como o novo destino a rumar, pelas facilidades de entrada.) Quanto à triagem entre refugiados (susceptíveis de asilo), e migrantes económicos (passíveis de deportação para os países de origem), na prática, essa é uma tarefa cheia de dificuldades. A mais óbvia é a de identificar aqueles que não estão documentados, seja pelas peripécias da viagem, seja porque já estão instruídos para irem assim pelas redes de tráfico ilegal. (Estas têm um negócio imensamente lucrativo nas travessias do Mediterrâneo, em muitos casos abandonos). Para além disso, o processo pode durar largos meses, ou anos. Daí decorre um problema político e humanitário crítico quando estamos perante fluxos de massa. Se, por hipótese, mais à frente se vier a verificar que a grande maioria são migrantes económicos — ou seja, que não há qualquer obrigação legal internacional de os acolher — a realidade é que estes já estão em território europeu. Acabam, na maioria dos casos, por engrossar as fileiras da migração ilegal. É isto que explica nos países mais directamente expostos às vagas migratórias, como a Itália, que em relativamente pouco tempo surjam dezenas ou centenas de milhar de migrantes ilegais.
4. Pela engrenagem explicada, as migrações em massa tendem a levar a um problema humanitário e político com um enorme potencial fracturante e desestabilizador em vários Estados. Importa ter isso bem claro em qualquer análise equilibrada e abrangente. Na União Europeia, o que torna a sua gestão muito difícil é que, nas actuais circunstâncias políticas europeias e do mundo, não é possível actuar na área humanitária acolhendo migrantes em massa, sem produzir efeitos secundários (negativos) na democracia liberal e na integração. O já referido caso do Brexit, ao qual se juntam o da ascensão da Alternativa para a Alemanha, da Liga em Itália, ou do Partido da Liberdade da Áustria, entre outros, não deixam dúvidas quanto a essa conexão. Quando há uma oposição significativa, eventualmente maioritária, nas sociedades de acolhimento, o resultado é perverso para as democracias ocidentais. A realização do ideal humanitário, por muito nobre que este seja em termos humanistas, tem um preço político elevado: as migrações em massa acabam por colocar em confronto a componente democrática — a vontade da maioria —, com a componente liberal — a liberdade de circulação, a abertura de fronteiras, os direitos das minorias, etc. Para um crescente número de cidadãos, tornam atractivas formas de democracia iliberal (como na Hungria e na Polónia), ou até autoritarismo como na Rússia e na China. Acabam por ser vistas como mais eficazes para lidar com este e outros problemas. É fácil perceber que tal percepção, instalando-se na população, ou partes significativas desta, faz retroceder a democracia liberal e potencia a desintegração da própria União Europeia.
5. No cerne do problema está um ponto crítico. As sociedades europeias discordam fundamentalmente na questão das migrações. Para além das declarações grandiosas dos Tratados e outros documentos, não há valores europeus comuns partilhados quanto a isso. Essa discordância fundamental tem uma importante consequência política: torna praticamente impossível construir qualquer abordagem migratória eficaz e com a qual a generalidade dos Estados e populações europeias se identifiquem. Há razões profundas para isso. Na Europa Ocidental tende a prevalecer um sentimento de culpa pós-colonial e há uma crítica constante aos excessos do nacionalismo. Ao contrário, no Centro e Leste europeu, não há sentimentos de culpa pós-colonial (não houve passado colonizador), nem uma percepção generalizada de excessos de nacionalismo (são Estados-Nação recentes e sentem-se vítimas de domínio no passado por outros Estados/impérios). Isto leva a visões muito diferentes sobre o modelo ideal de sociedade: a sociedade multicultural idolatrada a Ocidente — onde a aceitação de migrantes de outras partes do mundo é uma componente fundamental — é pouco ou nada atractiva no Centro Leste europeu, ancorado em valores clássicos de nação. Para além disso, mesmo nas sociedades ocidentais, há um ponto a partir do qual os fenómenos migratórios de massa geram uma reacção política antiliberal forte, ou fortíssima — a Itália, após a França, a Holanda e o Reino Unido é apenas o caso mais recente. Normalmente isso ocorre quando os migrantes são vistos, correcta ou incorrectamente, como competidores no mercado de trabalho e nos benefícios sociais, pela classe média e baixa da população. Ocorre também quando há choques culturais profundos sobre valores estruturantes da sociedade. Tudo isso já está a acontecer.
6. Após o referendo britânico de 2016 que levou ao Brexit, muitos receavam que o ano de 2017 fosse o ano o annus horribilis da União Europeia. Com a vitória de Emmanuel Macron nas presidenciais francesas, afastando Marine Le Pen, a tendência foi suspirar de alívio. A vaga populista foi vista como contida e a percepção dominante foi que a construção europeia seria relançada, como nos bons velhos tempos do passado, pelo eixo franco-alemão. Os que pensam assim ainda não perceberam que tal União Europeia já não existe, nem tem condições para voltar a existir. E que o ano de 2018 pode ser muito mais problemático e transformador, nos vários sentidos da palavra. A conjugação da saída britânica com a contestação do Grupo de Visegrado (Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria) na política migratória e outras áreas, a aproximação a estes da Áustria e da Itália, a guerra comercial desencadeada por Donald Trump, são problemas extremamente sérios. Paradoxalmente, no caso das migrações em massa, a União Europeia anda à deriva no meio de dois populismos. Um, o mais óbvio e agressivo, é um populismo xenófobo — daqueles que recusam qualquer acolhimento de migrantes exteriores à Europa, mesmo em doses mínimas; o outro, que é menos evidente, mas também nocivo, é um populismo humanitário — daqueles que, auto elevando-se a consciência moral da humanidade, pressionam social e politicamente para acolher (quase) toda a desgraça do mundo exterior. Estas duas forças simétricas, que prosperam atacando-se entre si, fazem mal à democracia liberal e desgastam a União Europeia. O resultado de tudo isto é uma política migratória europeia falhada com custos ainda maiores do que a inexistência desta teria.