Arrábida

No Douro, era bom que se esclarecesse o que é que se passa junto à escarpa. Do dinheiro já sabemos.

A Arrábida é um local muito especial e por isso o preço de venda de cada metro quadrado de habitação pode com facilidade chegar aos 4600 euros. O preço de venda do metro quadrado de habitação na Arrábida pode com facilidade chegar aos 4600 euros e por isso a Arrábida é um local tão especial. E vice-versa. No cimo da escarpa constrói-se um gigantesco poleiro com vistas para o alto mar. Ficava melhor um farol. Por ser lugar ventilado, também lá ficaria D. Quixote e dois pares de moinhos. Na base da escarpa fez-se uma gigantesca cristaleira sobre pilares atarracados cercados de rede (electrificada?). São quase 200 metros de aborrecimento arquitectónico a contrastar com a elegância e proporção do edifício do restaurante ali em frente. A relação com a rua é de uma total aridez. Não chegariam dez caixas de Fairy ultra-concentrado para limpar tanta vidraria. Chispa ao por do sol. Visto da Afurada é um estronço. Vale milhões (a sua única razão de ser).
 
Nem sempre foi assim. Durante séculos, as margens do rio Douro eram boas para localizar fábricas, caves de vinho, armazéns, alfândegas, centrais de produção eléctrica, gasómetros, escritórios de transitários, estaleiros e tudo o que fosse relacionado com a actividade portuária e comercial. O Douro era o porto do Porto e o rio estava quase permanentemente pejado de barcos grandes e pequenos, rabelos, lugres ou vapores transportando carvão, vinho, bacalhau, ferro, máquinas, madeira e tudo o mais. Era a Faina Fluvial que Manoel de Oliveira magistralmente filmou, o trabalho duro, as más condições de vida, as casas pobres e sobrelotadas da Ribeira e do Barredo. Leixões é desde há muito o novo porto marítimo e as mercadorias viajam em contentores, camiões ou barcos. O resto foi pelo rio abaixo. Salvaram-se as Caves do Vinho do Porto – até ver quantos pastelões parecidos com o Yeatman, ou com a já iniciada Disneylândia do vinho, ou outros investimentos do Fladgate Partnership ou outra máquina de cifrões, lhes caem em cima com a escandalosa contribuição de financiamentos públicos, como se a ganância privada não fosse necessária para financiar essas alegrias. Alguém explicará qual é a legitimidade dessa traficância de dinheiro público. O povo não entende. 
 
Esta disrupção abrupta na velha cidade portuária e mercantil provocou uma convulsão de efeitos imprevisíveis. Depois de um período de decadência em que a marginal do rio e as vistas para o rio eram apenas destroços e nevoeiro, instalou-se a estética fluvial, máquina poderosa de transformação de ruínas em imobiliário seja o que for, vale tudo que tenha vistas para o rio. Deste jeito, os terrenos na base da escarpa que ficam entre a cristaleira e a ponte da Arrábida saíram da opacidade onde andaram anos e anos a preencher discursos sobre de quem é o quê e onde se pode fazer que coisa, e mudaram-se para o alucinado mundo do vale tudo. Entretanto classificou-se a ponte como monumento nacional – coisa mais que merecida pela sua excepcionalidade, esperando que não lhe façam mais maldades como a que se fez quando se aumentaram as faixas de tráfego –, mas alguém se esqueceu de aprovar a sua Zona Especial de Protecção para que o tal monumento não ficasse submerso no meio da folia imobiliária ao alto e ao baixo.
 
Antes que tudo se dissolva no pântano e o cidadão aprofunde a sua já perigosa indiferença face à opacidade do governo das coisas públicas, do Estado de Direito, da justiça, da regulação urbanística entretanto transformada em dispositivo de ensarilhar leis, regulamentos, classificações e confusões, da democracia e do poder local, era bom que se esclarecesse o que é que se passa no reino da Dinamarca junto à escarpa. Do dinheiro já sabemos; seja imobiliário ou almas, tudo se compra e vende. Do que queremos saber é do resto. Pois. 

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A Arrábida é um local muito especial e por isso o preço de venda de cada metro quadrado de habitação pode com facilidade chegar aos 4600 euros. O preço de venda do metro quadrado de habitação na Arrábida pode com facilidade chegar aos 4600 euros e por isso a Arrábida é um local tão especial. E vice-versa. No cimo da escarpa constrói-se um gigantesco poleiro com vistas para o alto mar. Ficava melhor um farol. Por ser lugar ventilado, também lá ficaria D. Quixote e dois pares de moinhos. Na base da escarpa fez-se uma gigantesca cristaleira sobre pilares atarracados cercados de rede (electrificada?). São quase 200 metros de aborrecimento arquitectónico a contrastar com a elegância e proporção do edifício do restaurante ali em frente. A relação com a rua é de uma total aridez. Não chegariam dez caixas de Fairy ultra-concentrado para limpar tanta vidraria. Chispa ao por do sol. Visto da Afurada é um estronço. Vale milhões (a sua única razão de ser).
 
Nem sempre foi assim. Durante séculos, as margens do rio Douro eram boas para localizar fábricas, caves de vinho, armazéns, alfândegas, centrais de produção eléctrica, gasómetros, escritórios de transitários, estaleiros e tudo o que fosse relacionado com a actividade portuária e comercial. O Douro era o porto do Porto e o rio estava quase permanentemente pejado de barcos grandes e pequenos, rabelos, lugres ou vapores transportando carvão, vinho, bacalhau, ferro, máquinas, madeira e tudo o mais. Era a Faina Fluvial que Manoel de Oliveira magistralmente filmou, o trabalho duro, as más condições de vida, as casas pobres e sobrelotadas da Ribeira e do Barredo. Leixões é desde há muito o novo porto marítimo e as mercadorias viajam em contentores, camiões ou barcos. O resto foi pelo rio abaixo. Salvaram-se as Caves do Vinho do Porto – até ver quantos pastelões parecidos com o Yeatman, ou com a já iniciada Disneylândia do vinho, ou outros investimentos do Fladgate Partnership ou outra máquina de cifrões, lhes caem em cima com a escandalosa contribuição de financiamentos públicos, como se a ganância privada não fosse necessária para financiar essas alegrias. Alguém explicará qual é a legitimidade dessa traficância de dinheiro público. O povo não entende. 
 
Esta disrupção abrupta na velha cidade portuária e mercantil provocou uma convulsão de efeitos imprevisíveis. Depois de um período de decadência em que a marginal do rio e as vistas para o rio eram apenas destroços e nevoeiro, instalou-se a estética fluvial, máquina poderosa de transformação de ruínas em imobiliário seja o que for, vale tudo que tenha vistas para o rio. Deste jeito, os terrenos na base da escarpa que ficam entre a cristaleira e a ponte da Arrábida saíram da opacidade onde andaram anos e anos a preencher discursos sobre de quem é o quê e onde se pode fazer que coisa, e mudaram-se para o alucinado mundo do vale tudo. Entretanto classificou-se a ponte como monumento nacional – coisa mais que merecida pela sua excepcionalidade, esperando que não lhe façam mais maldades como a que se fez quando se aumentaram as faixas de tráfego –, mas alguém se esqueceu de aprovar a sua Zona Especial de Protecção para que o tal monumento não ficasse submerso no meio da folia imobiliária ao alto e ao baixo.
 
Antes que tudo se dissolva no pântano e o cidadão aprofunde a sua já perigosa indiferença face à opacidade do governo das coisas públicas, do Estado de Direito, da justiça, da regulação urbanística entretanto transformada em dispositivo de ensarilhar leis, regulamentos, classificações e confusões, da democracia e do poder local, era bom que se esclarecesse o que é que se passa no reino da Dinamarca junto à escarpa. Do dinheiro já sabemos; seja imobiliário ou almas, tudo se compra e vende. Do que queremos saber é do resto. Pois.