Um sorriso palestiniano livre
A morte de Razan Al-Najar com sua bata médica não foi por acaso. E não vai calar as palestinianas.
“A Paz e o Amor jamais irão morrer.” Foi isto que estava escrito numa faixa no funeral de Razan Al-Najar, no qual participaram milhares de pessoas em Gaza. Razan era uma paramédica voluntária de 21 anos, assassinada pelo exército israelita enquanto estava a tentar salvar vidas na Marcha do Regresso. Levantou os seus braços mostrando a sua bata branca, mesmo assim foi atingida com uma bala que furou o peito.
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“A Paz e o Amor jamais irão morrer.” Foi isto que estava escrito numa faixa no funeral de Razan Al-Najar, no qual participaram milhares de pessoas em Gaza. Razan era uma paramédica voluntária de 21 anos, assassinada pelo exército israelita enquanto estava a tentar salvar vidas na Marcha do Regresso. Levantou os seus braços mostrando a sua bata branca, mesmo assim foi atingida com uma bala que furou o peito.
Um dia antes da morte de Razan, um artigo no PÚBLICO estava precisamente a justificar o assassínio de uma bebé nesta marcha. Seguindo a ética patriarcal de sempre culpabilizar as mães e a estratégia colonial israelita de sempre demonizar as mulheres palestinianas, o artigo incrimina a mãe pela morte da sua cria por a ter levado à manifestação, e isentava as bombas lacrimogénias israelitas que mataram a criança. O artigo vai por além, colocando a palavra “massacre” entre aspas. De facto, a morte de 128 palestinianos e palestinianas por protestarem pacificamente não é apenas um massacre, mas, sim, um massacre que não distingue crianças, jornalistas ou médicos. Mata sem aspas, sem vírgulas, sem sequer um ponto de interrogação. Será que agora a autora desse mesmo artigo irá questionar também o porquê de estar a paramédica Razan Al-Najar na Marcha do Regresso? Questionará porque é que ela tentava salvar vidas? Ou será que colocará “as vidas palestinianas” entre aspas, considerando-as vidas que não merecem ser salvas, menos dignas, menos humanas?
Razan não era uma paramédica qualquer. Poucos dias antes de morrer, apareceu em diferentes meios de comunicação por ser uma das primeiras mulheres paramédicas a trabalhar directamente no terreno da Marcha do Regresso. Numa das entrevistas, Razan afirmou: “O nosso objectivo é salvar vidas... e mandar uma mensagem ao mundo, que nós sem armas somos capazes de fazer tudo”. Falou do orgulho do pai dela e criticou o sexismo em Gaza: “A sociedade tem que aceitar-nos [mulheres]. Se não nos aceitar por escolha, vai ter que aceitar-nos à força. Acredito que temos mais força do que muitos homens. Aposto que nenhum teve a coragem que eu mostrei no primeiro dia de protestos como primeira paramédica.” Razan era uma mulher que ousava forçar uma sociedade, uma mulher que se atrevia a enfrentar a ocupação, tendo a bata branca como a sua única arma. Para o poder colonial patriarcal israelita, a atrevida Razan era uma mulher perigosa.
A ocupação israelita quer manter uma certa imagem sobre as mulheres palestinianas para servir uma das suas duas narrativas: a imagem de terrorista, islâmica, misteriosa, inumana e sobretudo perigosa e assim, utilizando o conceito da filósofa judia Judith Butler, a sua vida não merece o choro quando é terminada. A sua morte é justificada. Na segunda, a ocupação israelita junta-se à narrativa hegemónica colonial ocidental e retrata a mulher palestiniana como primitiva, oprimida, vítima da sua sociedade e que precisa do ocupante para a “libertar”, e assim justifica moralmente a ocupação. O contraste entre a emancipação e humanidade de Razan, de um lado, e estas imagens, por outro lado, confundiram as estratégias coloniais patriarcais. Razan Al-Najar, tal como Ahed Tamimi e muitas outras meninas palestinianas desta geração, confrontaram e contrariam esta narrativa: são mulheres palestinianas à sua maneira, resistem, ao mesmo tempo, à ocupação israelita e à sociedade palestiniana com as armas mais corajosas e mais humanas. Resistem nas condições que elas próprias molduram.
A morte de Razan Al-Najar com sua bata médica não foi por acaso, tal como a morte do fotojornalista palestiniano Yasser Murtaja com o colete de jornalista também não foi uma coincidência. Razan desafiou as estruturas de poder coloniais e patriarcais e redefiniu a resistência, reescreveu-a numa linguagem palestiniana de mulheres com coragem e não abdicou de nenhuma luta até ao tiro... Um tiro que não vai calar as palestinianas. Um tiro que matou Razan mas que nunca matará o seu sorriso. O sorriso de Razan será para sempre um sorriso palestiniano livre.