O passado colonial: Macron age, Merkel reage
Na Alemanha, o passado colonial deixou de ser uma sombra para assumir contornos contundentes e chegar ao centro do poder.
Anda um novo espetro pela Europa, o espetro do colonialismo. Ele assombra especialmente os museus que guardam, expõem e interpretam o seu legado, muitas vezes roubado ou adquirido ilegalmente – algo quase sempre silenciado nas antigas metrópoles. Em Portugal, o espetro tem rondado em forma de debates sobre racismo, sobre a visita do Presidente ao Senegal e sobre o Museu das Descobertas. O discurso de Macron em 2017 em Ouagadougou, Burquina Faso, sobre África e a intenção de restituir os objetos dos museus aos africanos marca uma mudança paradigmática na abordagem do tema.
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Anda um novo espetro pela Europa, o espetro do colonialismo. Ele assombra especialmente os museus que guardam, expõem e interpretam o seu legado, muitas vezes roubado ou adquirido ilegalmente – algo quase sempre silenciado nas antigas metrópoles. Em Portugal, o espetro tem rondado em forma de debates sobre racismo, sobre a visita do Presidente ao Senegal e sobre o Museu das Descobertas. O discurso de Macron em 2017 em Ouagadougou, Burquina Faso, sobre África e a intenção de restituir os objetos dos museus aos africanos marca uma mudança paradigmática na abordagem do tema.
Na Alemanha, o passado colonial deixou de ser uma sombra para assumir contornos contundentes e chegar ao centro do poder: No Tratado de Coligação de Março de 2018, os partidos do governo comprometeram-se lidar com a questão colonial. A 14 Maio, a ministra de Estado da Cultura, Monika Grütters, apressou-se a lançar O Guia Prático para a Abordagem das Coleções Oriundas de Contextos Coloniais da Confederação Alemã de Museus, apesar de provisório.
Tais iniciativas podem surpreender atendendo a que o colonialismo alemão foi um episódio de “apenas” três décadas e ao peso do passado nazi. Mas foi precisamente esse passado que sensibilizou para a área. Enquanto a maioria dos historiadores olhava para o período nazi numa perspetiva nacional e eurocêntrica, historiadores da época colonial frisavam a importância de uma visão global. Não foi por acaso que o debate se incendiou em 2004, aquando do centenário do genocídio dos povos Herero e Nama, em torno da obra Genocídio no Sudoeste Alemão: A Guerra Colonial (1904-1908), editada por Joachim Zeller e Jürgen Zimmerer em 2003, em que o último defende que o primeiro genocídio do século XX não foi o Holocausto nem o genocídio arménio, mas sim dos povos Herero e Nama. O debate académico passou ligeiramente pelo campo político em 2004 em Okakarara, Namíbia, quando Heidemarie Wieczorek-Zeul, a ministra do Desenvolvimento do governo social-democrata de Schröder, foi o primeiro membro de um governo a pedir desculpas pelo genocídio.
Porém, tais impulsos foram travados pelo receio de reparações e pelas grandes coligações de Angela Merkel, de pálido perfil político e cultural. O malogro das negociações sobre reparações com os representantes das vítimas conduziu a uma queixa em 2017 num tribunal em Nova Iorque pela morte de 80.000 pessoas durante a guerra colonial.
A terceira coligação encetou o seu trabalho, o partido de extrema-direita, eurocéptico e xenófobo Alternative für Deutschland (AfD) tornou-se na terceira força no parlamento, discursos nacionalistas e racistas pululam na Alemanha, políticos exigem uma “revolução conservadora” apesar dos partidos conservadores regerem o país desde 1983 (excepto o interregno entre 1998-2005).
Se, apesar deste contexto, a questão colonial está consignada no Tratado de Coligação e Grütters se apressou a anunciar um Guia Prático, isso não se deve tanto a iniciativa própria, mas a pressões da sociedade civil, a rivalidades entre os partidos da coligação e ao desejo de manter alguma compostura internacional. Em 2007, foi fundada a associação Berlin-Postkolonial, que reúne várias pessoas em organizações civis na luta contra o racismo e pela lembrança do colonialismo. Seguiu-se o centro de investigação Hamburgs (Post-)Koloniales Erbe na Universidade de Hamburgo, com o apoio da cidade de Hamburgo, que tem vindo a investigar e salientar a amnésia colonial alemã. Recentemente, o ministro da Cultura social-democrata de Hamburgo, Carsten Brosda, pediu desculpas pelos crimes coloniais em nome da cidade. Também o Museu Humboldt em Berlim, que o governo tenciona inaugurar solenemente em 2019, contribuiu consideravelmente para o debate. Envolto em polémica desde o início porque está a ser edificado no sítio do antigo Palácio da República da RDA, que foi detonado após a reunificação, mas com a fachada barroca do palácio que o precedeu, e por ser financiado por organizações movidas por uma nostalgia prussiana, os responsáveis teceram o plano de aí reunir coleções etnológicas para dar um verniz tolerante e humanista ao projeto. As críticas à abordagem paternalista dessas coleções não se fizeram esperar e culminaram na saída de peritos do projeto, entre eles Bénédicte Savoy, conselheira atual de Macron.
É neste contexto nacional e como resposta alemã ao desafio de Macron que a apresentação apressada do Guia Prático por Grütters – que também é responsável pelo Museum Humboldt – deve ser lida. Ele reflete bem o estilo alemão em contraste com francês. Enquanto Macron anuncia pomposamente uma visão, a ministra de Merkel reage cuidadosamente e sem tomar decisões claras. Ao concentrar-se na investigação da proveniência e na digitalização dos objetos, Berlim defende-se de críticas de inação política, dá uma aura de rigor à abordagem da matéria e aos museus alguns anos de tréguas. Até a investigação estar concluída, anos se passarão. E quando isso acontecer, quem sabe se será necessário passar à ação – e se o espetro continuará a rondar a Europa.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico