Uma grande gargalhada para a tragédia

O Centro do Mundo, estreia de Ana Cristina Leonardo no romance, é um pícaro, livro de heróis cómico e trágico, onde a história da Europa na primeira metade do século XX vagueia pela tragicomédia humana.

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Um caso singular na literatura portuguesa MIGUEL MANSO

“Em 1896 vinha ao mundo Boris Skossireff” e o facto seria determinante para a estreia no romance de Ana Cristina Leonardo (Olhão, 1959). Boris, aventureiro russo, figura tão real quanto inverosímil, é o grande alvo da imaginação da autora, filtro que nos aproxima de uma certa ideia de verdade, quase impossível de apurar seguindo os métodos de investigação tradicionais que a teriam levado por um caminho menos delirantemente literário do que o conseguido neste O Centro do Mundo. Não estamos perante uma biografia deste homem improvável, mas do retrato ficcional de alguém “de carácter temerário e grande pendor para línguas” que se cruzou com a história da Europa na primeira metade do século XX e pôs Olhão no centro do mundo.

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“Em 1896 vinha ao mundo Boris Skossireff” e o facto seria determinante para a estreia no romance de Ana Cristina Leonardo (Olhão, 1959). Boris, aventureiro russo, figura tão real quanto inverosímil, é o grande alvo da imaginação da autora, filtro que nos aproxima de uma certa ideia de verdade, quase impossível de apurar seguindo os métodos de investigação tradicionais que a teriam levado por um caminho menos delirantemente literário do que o conseguido neste O Centro do Mundo. Não estamos perante uma biografia deste homem improvável, mas do retrato ficcional de alguém “de carácter temerário e grande pendor para línguas” que se cruzou com a história da Europa na primeira metade do século XX e pôs Olhão no centro do mundo.

São muitos os detalhes que desafiam a classificação mais ortodoxa  de romance aplicada a esta narrativa onde o protagonista tanto pode ser Boris como Olhão, em que as fronteiras entre real e ficcional se tocam, o ensaio se cruza com a invenção, há diálogos entre o texto principal e as notas de rodapé, as fotografias — a preto e branco — de lugares e gente reais pontuam o pícaro de uma história povoada por gente bizarra, loucos, simples, lunáticos, aventureiros, em que o único compromisso com o que aconteceu é o de ser o grande inspirador e instigador de uma fantasia literária que tem como subtítulo Retrato Imaginário do Russo Apátrida Boris I de Andorra e Mano-Rei de Olhão, Agente dos Ingleses e Oficial da Wehrmacht, Preso e Condenado aos Gulags da Sibéria.

Já se percebeu que não estamos perante um livro convencional, mas a sua originalidade não se confina a estes pormenores. Há um invulgar sentido de humor e de funesto, um pícaro próximo de livros como O Trincapregos, de Albert Cohen, o romance do herói cómico, mas também do desconcerto dos russos visível nas suas mais amplas variações nos contos de Tolstoi. Isso enquanto vai desfilando a história de Boris, que de forma sucinta se pode dizer que é um aventureiro russo, mas que é um pouco mais do que isso, alguém nascido em Vilnius, Lituânia, em finais do século XIX, que foge para Inglaterra durante a revolução russa. Ali, torna-se espião mas é despedido depois de passar cheques sem cobertura. A Holanda será a sua paragem seguinte e lugar de outra identidade: inventa que é duque. Tudo acaba depois de ser apanhado a roubar um relógio de ouro. Próximo destino: Canárias.

Nova personagem: é um aristocrata russo desapossado de todos os bens pelos comunistas. Aí terá o auge da sua vida amorosa, envolve-se com um americana rica e com uma jovem inglesa até ir parar a Andorra onde joga todos os seus trunfos imaginativos e recursos linguísticos para ser nomeado príncipe. Será, mas por uma semana. É preso e depois de muitas peripécias chega a Barcelona, Madrid e passa a fronteira em Portalegre com a ajuda de Rolão Preto, o fascista que fazia oposição a Salazar, e pára em Lisboa. A intenção é chegar a França, mas, sem papéis, aconselham-no a ir por Marrocos a partir de um porto no Sul onde se sabe de um homem que ajuda quem quer sair do país por mar. Esse porto fica numa povoação piscatória, Olhão.

“Se havia casa em Olhão onde Boris Skossyreff seria bem acolhido, era decerto a de Francisco Fernandes Lopes, excêntrico, desafectado e genial olhanense, ‘renascentista desgarrado do século XX’, como lhe chamou alguém que não entra nesta história.” Esse médico de quem se diz que “sabia de tudo até de medicina” é uma das personagens que atravessam a vida de Boris, como um cineasta doido que um dia imigrou para a América e voltou a Olhão onde ajuda pessoas a fugir no seu barco de pesca por nenhuma outra razão além da solidariedade.

O ritmo do texto é por vezes alucinante, como quando elenca a doida relação de características de uma personagem, ou tem pausas para algum sossego ao convocar referências literárias, históricas, cinematográficas numa relação tão desconcertante quanto iluminada com o centro da narrativa. Proust está presente, como Scorsese, Xavier de Maistre, William Thackeray, Aquilino Ribeiro e todos os que Ana Cristina Leonardo chamou para iluminarem uma sátira, paródia, por vezes comédia de costumes, com muitas tragédias pessoais, entre elas a de Boris, o simpatizante de Hitler menos por convicções políticas do que por necessidade e engenho de sobrevivência, que foi parar à Sibéria, condenado a trabalhos forçados.

A história de Boris, o poliglota de ADN impoluto, não é no entanto mais do que pretexto para uma história maior, a de Olhão. “Apesar da ‘nobre indiferença muçulmana pelo autoclismo, o esgoto, a árvore frondosa e a ânsia de ar das ruas novas’ de que falava Aquilino dando razão a Boris, e da falta de pergaminhos que já em 1758 era notada pelo prior Sebastião de Sousa, Olhão mantém um lastro de glória. Industriais, pescadores e vates contrabandistas continuam a partilhar o desrespeito pela lei e o culto do Senhor dos Aflitos, numa vila pródiga em dândis e espanholas, estrangeiros e aventureiros, sardinhas e anarquistas, operários e fedor. Tresanda, resume Raul Brandão. Não exagera o simbolista. Ao peixe que apodrece sob o calor africano junta-se a matéria fecal que escorre a céu aberto, húmus pestilento que Captain Zorra nunca conseguiu olvidar, memória primeva que nos conduz, um pouco abruptamente, é certo, a Marilyn Monroe, actriz que nunca veio a Olhão.”

Foi a esta Olhão que chegou Boris na década de 30 e a mesma que ele deixou pouco depois. Sabemos o que pensou do sítio pelo que a autora nos deixa ler, mas o que pensaram os olhanenses de Boris? Esse é o tema da verdadeira segunda parte deste livro, o capítulo Anexos, em que assenta o outro lado da história desse homem, mas, sobretudo, neste momento do livro, da narrativa que corre paralela, a de Olhão. Essas vozes desfilam na primeira pessoa. São cinco depoimentos, testemunhos individuais de um enredo colectivo, criações da imaginação da escritora que conhece o potencial de comicidade da riqueza e da pobreza, da miséria ou da opulência, de um provincianismo que contrasta com a grande História, também trágica, da Europa naquele período. E conhece além disso os recursos literários para fazer deste livro um caso singular na literatura portuguesa.