As camadas segundo Nick Cave

No Inferno pluvioso, Cave obrigou-nos a ingressar numa Arca de Noé e por ali ficámos 90 minutos. Ensandecemos, choramos e reafirmamo-nos de que estamos vivos

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Paulo Pimenta

Pecador e redentor, Nick Cave desceu de um penhasco de sofrimento para nos salvar a todos, este sábado, 9 de Junho, no Nos Primavera Sound, no Porto.

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Pecador e redentor, Nick Cave desceu de um penhasco de sofrimento para nos salvar a todos, este sábado, 9 de Junho, no Nos Primavera Sound, no Porto.

No Inferno pluvioso, Cave obrigou-nos a ingressar numa Arca de Noé e por ali ficámos 90 minutos. Ensandecemos, choramos e reafirmamo-nos de que estamos vivos. Afinal, na tal arca, nós é somos as bestas e Ele é o alívio, o conforto e o descanso.

Com um (de muitos) esqueleto-maior na bagagem, Nick Cave mostrou-nos que a contranatura dos atropelos na sua existência pode ter uma razão de ser, a arte. Com Skeleton Tree e com toda a tragédia amorosa, pessoal, recusou-se a emudecer, elevou-se a lutar.

E é precisamente nesta conjunção, aquela em que ele ficará para a eternidade, que se deve repensar a concepção de dor. Nunca saberemos o interior de Cave, mas cada um de nós, inopinadamente, tem os seus próprios espinhos cravados, cicatrizes inexoráveis, pesares surdos, mas ensurdecedores.

A dor — a par com o amor — é, sem dúvida, o sentimento mais bonito, mais avassalador e mais unificante que podemos ter. São arrepios que nos unem enquanto pessoas, são horas tiradas para reflectir sobre a ausência, são dias tirados para criar. São, até, as pequenas emoções da pura rotina diária.

Todos nós dividimo-nos em camadas, a epiderme que mostramos a uns e a derme que mostramos a distintos. E a hipoderme, a mais íntima, a mais desconsagrada, o epítome da perturbação que fica para nós mesmos? O segredo de Nick Cave, deste passageiro de olho vítreo, é a rara (ínfima!) capacidade de despertar em nós esses depósitos de emoções, guardados em tecidos e folículos há anos, no quotidiano, ou reservados para a melancolia dos dias cinzentos.

Daí que tenha havido tempestade no Parque da Cidade do Porto. O temporal foi Noé, perdão, Nick Cave a puxar o céu em direcção aos nossos braços, para que pudéssemos expurgar e amenizar as cesuras da nossa senda cá em baixo. Blasfémia, pecado? Pouco importa, Ele conseguiu.