Salvini e a “lepenização” da Europa
A Liga ganhou o debate político impondo à sociedade e aos outros partidos a sua tese: “A imigração é o verdadeiro problema da Itália.” Uma das consequências é a ameaça de promover a europeização da xenofobia.
Matteo Salvini transformou um partido secessionista em declínio na força dominante da “direita nacional” italiana. Depois de “lepenizar” a Itália, a Liga está na vanguarda das novas forças soberanistas que visam mudar a face da União Europeia. A imigração transformou-se no problema central da Europa.
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Matteo Salvini transformou um partido secessionista em declínio na força dominante da “direita nacional” italiana. Depois de “lepenizar” a Itália, a Liga está na vanguarda das novas forças soberanistas que visam mudar a face da União Europeia. A imigração transformou-se no problema central da Europa.
É um grave equívoco confundir a antiga Liga Norte com a Liga de Salvini. Fundada por Umberto Bossi, a Liga Norte foi um forte movimento regionalista que defendeu o federalismo e mais tarde a independência do Norte de Itália, a mítica Padânia. Radicada no território e na sociedade do Norte, explodiu eleitoralmente durante a crise da “primeira República” em 1992-93, obtendo 10% dos votos nas eleições de 1996. Participou nos governos de Silvio Berlusconi. Foi virulentamente xenófoba — contra os imigrantes e contra os “parasitas” (italianos) do Sul. Não tinha uma ideologia identitária, apelava a razões económicas, ao “egoísmo do Norte rico”. Os inimigos eram o fisco e o Estado: “La Roma ladrona.”
Nas legislativas de 2013, a Liga Norte bateu no fundo com cerca de 4% dos votos. Em Dezembro, o eurodeputado Matteo Salvini conquistou a liderança. O país depressa descobriu um novo líder, omnipresente nas televisões. “Agressivo e descamisado, directo e concreto, investe num projecto ambicioso: fazer da Liga um partido nacional, não regionalista e classicamente de direita”, escreve o jornalista Valerio Renzi, autor do livro La politica della ruspa (2015) sobre Salvini. Este adopta as teses de Marine Le Pen e um programa de extrema-direita, resumido nas palavras de ordem “Os italianos primeiro”, “A Itália para os italianos” ou a batalha contra “a invasão dos imigrantes”.
La Ruspa significa escavadora. “Com o seu Caterpillar, Salvini quer destruir os campos de ciganos, arrasar os centros de acolhimento [de imigrantes], mandar borda fora o Governo Renzi e o euro. (...) La Ruspa é a metáfora da política de Salvini: radical e simples de compreender. Uma retórica pouco racional e por vezes irracional. Primeiro arrasar, depois discutir.”
Transmutação da Itália
Em 2014, a Liga torna-se um partido nacional. Adeus Padânia. O Norte desaparece do nome. Começa a implantar-se no Centro e no Sul. O segredo é simples. “Utiliza argumentos particularmente ‘interessantes’ e populares”, escreveu o politólogo Ilvo Diamanti. “Em primeiro lugar, o medo e os medos. Contra a criminalidade e contra os imigrantes e os estrangeiros (criminosos). E o medo, como é sabido, faz-se escutar.”
O programa de extrema-direita distingue-o de Berlusconi mas permanece seu aliado porque quer herdar o seu eleitorado. Ao mesmo tempo, começa a disputar ao Movimento 5 Estrelas (M5S), que entra no Parlamento em 2013, o espaço do protesto anti-sistema. Mas, de facto, forma-se uma “espúria coligação populista” entre eles, em nome da “recuperação da soberania nacional” e de uma política de afrontamento com o euro e a UE. Coligação “espúria” entre duas forças de natureza muito distinta mas que virá a convergir, em 2018, numa aliança de governo.
Não foi só a Liga que mudou, foi também a Itália. Salvini não seria o que é sem “o vento que atiça os piores instintos das pessoas”, disse alguém. Há dois momentos decisivos na mudança do clima político. Depois do Governo Monti (2011-13), o Partido Democrático (PD), de Matteo Renzi, e a Força Itália (FI), de Berlusconi, falham a tentativa de restabelecer o bipolarismo político e de opor um dique às forças anti-sistema. A Liga começa a subir nas sondagens, atraindo eleitores da FI.
O segundo — que serve de espoleta — é a crise migratória. Em 2014, desembarcam por mar na Itália 170 mil pessoas. É o recorde da década, que vai ser superado em 2016 com 181 mil chegadas. O Governo não os podia “atirar ao mar” e teve de os acolher. Em 2015, a imigração torna-se o tema dominante do debate político.
Salvini ganha o debate impondo a sua tese: “O verdadeiro problema de Itália são os imigrantes.” Ligado à imigração e à indiferença da UE, radicaliza-se o soberanismo. Os partidos do “sistema” resignam-se a aceitar, embora noutra linguagem, a temática da Liga. Resume Valerio Renzi: “Antes de vencer nas urnas, Salvini venceu no país, fazendo banalizar em amplos sectores da sociedade as palavras de ordem que antes pertenciam à direita radical.” O certo é que a Liga passou dos 4% de 2013 para 17% nas eleições deste ano e subiu nas sondagens para 27% das intenções de voto.
É importante notar que Salvini é também um camaleão. As contradições entre o que grita nos comícios e o que sussurra nos salões não incomodam os seus eleitores. No Governo, a Liga tem duas caras: Salvini, no Interior, e Giancarlo Giorgetti, na Subsecretaria da Presidência, controlando os serviços de informação e organizando a agenda do Conselho de Ministros: “O homem mais poderoso do Governo”, escreve Il Sole 24 Ore. Salvini é a “fera”, Giorgetti um pragmático que frequenta os “palácios do sistema”.
Europeização da xenofobia?
É cedo para perceber para onde vai a Itália, tal como o impacto europeu do “laboratório italiano”. Ainda não é clara a dinâmica do novo Governo, tal como os equilíbrios entre a Liga e o M5S. Até agora, tem sido a Liga a marcar mais significativamente a agenda política.
Alguns autores falam na ameaça de “orbanização” da Europa — do nome de Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro — e de uma “internacional soberanista”. A Liga é “sócia” de vários partidos europeus de extrema-direita e olha com alguma atracção a deriva eurocéptica de Orbán e do Grupo de Visegrado (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia). Nem Orbán nem o polaco Jaroslaw Kaczynski querem sair da UE, querem impor o regresso da soberania das nações e advogam um “nacionalismo europeu” contra a “islamização das sociedades europeias”. Vai Roma abandonar a sua colocação política na Europa e aliar-se a Visegrado? Não é uma pergunta retórica, mas um tema de debate na Itália.
O geopolítico francês Sylvain Kahn teme as políticas anti-imigração italianas. “A primeira e mais duradoura consequência na Europa da chegada ao poder do M5S e da Liga será provavelmente uma europeização da xenofobia. (...) Endurece o afrontamento entre as duas Europas: a de um nacionalismo rejuvenescido sob a forma de nacionalismo europeu e a de um europeísmo renovado pela sua afirmação ofensiva de uma soberania europeia.”
É uma questão de dimensão europeia e não só italiana. Não deu a Dinamarca o exemplo da possibilidade de abolir o Estado de direito para os imigrantes não cidadãos de países da UE? E não está só.