A Santiago também se sobe de olhos no mar

Nem tanto ao mar nem tanto à terra. A rota de peregrinação histórica agora recuperada sobe o litoral Norte entre o oceano, a serra, os rios, as povoações e o património arquitectónico. O caminho é uno, mas o que se vê lá fora e o que se sente cá dentro é tão diverso quanto o número de peregrinos. Já se adivinha o problema: é vício sem cura ou antídoto.

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Não fosse aquela concha de vieira, gorda e rosada, e talvez Nuno Gaspar não estivesse hoje aqui. Talvez nenhum dos quatro ciclistas portugueses descesse agora a rua a alta velocidade rumo a Santiago de Compostela. Há uns anos, o espanto de esperar peixe e ver o pequeno molusco “a esguichar água” no extremo do anzol foi um “sinal” para Nuno. Nunca tinha ouvido falar de vieiras por ali, quanto mais conchas apanhadas à cana. “Foi um chamamento”, diz entre o sério e o gracejo, com a concha sobre a testa, qual farolim, presa aos aros do capacete. “É a terceira vez que faço o caminho e é a terceira vez que a vieira vem comigo.”

Dos quatro, Nuno é o único para quem ter como meta o túmulo do apóstolo não é uma estreia. Já fez duas vezes o Caminho Português Central a partir do Porto. E, agora, desafiou três amigos do BTT a saírem de Lisboa rumo a Santiago, derivando no Porto para o Caminho Português da Costa. Desde o ano passado que a rota se encontra totalmente reabilitada, com nova sinalética ao longo do percurso, desde o Porto até Valença. De sábado a sexta-feira, conta Pedro Vilante, planeiam pedalar entre “90 e 100 quilómetros por dia”, ficando a dormir onde o cansaço dita o fim de cada etapa.

Para Nuno, no entanto, há uma paragem obrigatória: visitar o albergue de peregrinos em Caldas de Reyes. “É a minha família galega.” Há quatro anos, quando ali chegou pela primeira vez, encontrou o proprietário à porta para o receber, a mãe debruçada sobre a janela e a filha sentada nas escadas. Como se estivessem ali desde sempre à espera dele. Foi um sentimento de encontro, de pertença, de empatia. Daqueles que não se conseguem transpor em palavras. “Depois estava lá outro rapaz, que também se chamava Nuno e que também era português, que tinha estragado os sapatos no caminho.” O dono do albergue apercebeu-se e veio com um presente nas mãos. “Não te deixo sair daqui sem as botas que eram do meu pai”, recorda ouvi-lo dizer. Em Setembro do ano passado, Nuno voltou ao caminho e ao albergue. “Ficámos uns cinco minutos abraçados. Sem falar.”

Desta vez, não devem ficar alojados no albergue. Mas para Nuno aquele reencontro faz tão parte do caminho quanto o caminho em si. Tem de lá ir. Nem que para isso tenha de obrigar os amigos a um pequeno desvio. Depois do abraço, não faltarão mais do que 36 quilómetros para chegarem a Santiago de Compostela. Um instante para quem, naquele momento, já carrega 500 quilómetros nos pedais. “A vida é dura e o caminho também”, resume às tantas um esforço que nem esforço parece ser. E o fim? Qual é a sensação de finalmente vislumbrar a catedral? “Desmanchei-me quando lá cheguei pela primeira vez”, confessa Nuno. “Não faço o caminho pela religião, mas é uma comoção que não se explica.”

Redescobrir uma rota do século XV

Quando encontramos os quatro ciclistas portugueses em Carreço, no concelho de Viana do Castelo, pouco falta para contrariarmos o rio Minho até Valença e terminarmos o Caminho Português da Costa. Espanha começa para lá da ponte metálica e, a partir dali, as principais rotas peregrinas portuguesas convergem num único trajecto assinalado em direcção a Santiago de Compostela.

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O troço entre Vila Praia de Âncora e o areal de Moledo é um dos poucos que verdadeiramente se abeira do mar

Deste lado da fronteira, o Caminho Português Central é o mais conhecido e aquele que é tido como o mais antigo em território nacional. Os registos históricos remontam-no, pelo menos, ao século XII, altura em que a maioria dos peregrinos fazia o percurso por Braga. Era sede da diocese e a alternativa mais viável. “Até à construção da ponte de Barcelos era difícil atravessar o rio Cávado [na zona mais litoral]”, conta Manuel Araújo, técnico superior do Arquivo Histórico Municipal do Porto. Além de estudar os caminhos de Santiago há cerca de “25 ou 30 anos”, Manuel é peregrino há mais de 20, com muitas rotas jacobinas percorridas. Depois da primeira experiência, garante, “fica-se de tal maneira viciado que não há antídoto para isto”.

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Com a descida das populações do Norte até à orla costeira e a edificação de uma economia baseada nos recursos do mar, os habitantes devotos das novas povoações fixadas junto ao litoral terão iniciado uma nova rota de peregrinação até Santiago de Compostela. Em vez de alongarem o percurso num desvio pelo interior do país, as populações costeiras e os peregrinos que desembarcavam nos portos marítimos subiam em recta pela costa, partindo de vila em cidade até à travessia ribeirinha final para Espanha. Assim terá nascido o Caminho Português da Costa no século XV. Embora “haja quem diga que até é anterior ao central”, aponta Manuel Araújo. É que o percurso passa junto à igreja paroquial de Castelo do Neiva (concelho de Viana do Castelo), o mais antigo templo dedicado a Santiago fora do território espanhol. De acordo com os registos históricos, terá sido consagrada no século IX, pouco depois da descoberta do túmulo do apóstolo em Compostela e três séculos antes da criação do Reino de Portugal.

Esta rota jacobina — que se separa do caminho central no Porto, subindo a faixa costeira por Vila do Conde, Esposende, Viana do Castelo, Caminha — caiu entretanto em desuso e manteve-se esquecida quando, em meados do século passado, as peregrinações a Santiago de Compostela receberam um novo impulso. Enquanto o percurso pelo interior do país ascendia a uma das rotas mais populares até Santiago (a segunda mais concorrida, a seguir ao hiperbólico “Caminho Francês”, que em 2016 foi escolhido por 64% dos caminhantes, de acordo com os dados publicados pela Oficina do Peregrino), o percurso costeiro português não surgia sequer discriminado nas estatísticas oficiais.

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No ano passado, foram colocadas novas placas de sinalização ao longo de todo o Caminho Português da Costa, do Porto a Valença

Há cerca de onze anos, no entanto, os dez municípios atravessados por esta variante do caminho aliaram-se para justificar historicamente o percurso e torná-lo uno, do Porto a Valença. “Esse trabalho começa muito cedo, principalmente com um grupo de técnicos que impulsionou um conjunto de reuniões para tentar promover e descobrir este caminho”, recorda Aurora Viães, vereadora de Vila Nova de Cerveira. Num primeiro momento, assume a autarca, o projecto não recebeu o mesmo “afinco da parte política”. Mas com o passar do tempo “houve um congregar de vontades”.

No ano passado, a candidatura conjunta aos fundos do Norte2020, no valor de quase dois milhões de euros, permitiu “fazer toda a marcação do percurso, colocar as placas de sinalização e criar uma linha de promoção com uma linguagem comum”. O Caminho Português da Costa é agora não só uma rota de peregrinação até Santiago de Compostela, como um site, uma aplicação móvel e um guia impresso, onde é possível encontrar dicas sobre os cuidados a ter antes, durante e depois da caminhada, assim como informação detalhada sobre os trilhos, a localização dos albergues oficiais, além dos muitos pontos de interesse que surgem ao longo do percurso, entre outros dados.

“Nem a participação nos Jogos Olímpicos me marcou tanto”

Não deixa de ser curioso que a barca de passagem que daria origem à reconstituição histórica e requalificação do Caminho Português da Costa acabe por ficar fora do itinerário principal sinalizado no terreno. Os caminhos de Santiago sempre foram assim mesmo: cada peregrino escolhia fazer a travessia por onde mais lhe convinha, numa intrincada rede de percursos e alternativas possíveis. Ao hiato dos séculos, resistem agora apenas os mais populares ou aqueles cujo traçado foi sendo inscrito na História e escolhido pelas entidades (eclesiásticas ou governamentais) para sobreviver ao tempo.

No concelho de Esposende há, por isso, dois trilhos possíveis. O primeiro, mais antigo e de fundação romana, provém de São Pedro de Rates (onde existe um albergue oficial) e percorre zonas rurais até chegar a Fonte Boa, onde antigamente uma “barca por Deus” fazia a travessia gratuita dos peregrinos até à margem direita do rio Cávado. Já o segundo percurso, que hoje integra o itinerário principal, sobe pelas povoações costeiras, da Apúlia às Marinhas (onde fica o albergue seguinte). Um pé histórico no rio, outro no veraneio da areia. É conforme se prefira, portanto. Ou que se faça uma travessia a dois tempos, como foi o nosso caso, já que venceremos o Cávado só para depois voltar atrás e caminhar por entre um pinhal arenoso até Fão.

Para José Costa, técnico de turismo da autarquia de Esposende, “a Barca do Lago é o ponto mais importante na história dos peregrinos” no concelho. Motivo que compensa o desvio para subir a bordo de uma réplica da embarcação medieval que deu nome à localidade. Até aos anos 1940, uma barca de carga fez por aqui o transporte de carros e de animais de uma margem à outra. O pequeno barco de passageiros manteve-se até finais dos anos 1970.

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“Quando fui [a Santiago] houve pessoas que me ajudaram a troco de nada. É uma forma de retribuir”, conta Belmiro Penetra, proprietário da nova barca de passagem em Fonte Boa

Em 2007, a ideia de recriar a velha embarcação de madeira para reconstituir a travessia histórica do Cávado entre as freguesias de Fonte Boa e de Gemeses foi a ignição no motor que levaria ao nascimento do projecto de recuperação do Caminho Português da Costa. “Foi a génese. Não fazia sentido pensar este projecto só a nível local”, recorda José Costa. “Tínhamos de fazê-lo numa perspectiva mais alargada.” A aliança entre municípios vizinhos acabou por expandir-se aos dez concelhos actuais. No entanto, no final do processo, acabou por não ser possível incluir a recriação da barca na candidatura aos fundos comunitários. O empresário e canoísta Belmiro Penetra decidiu fazê-lo a título privado, integrando o projecto na empresa Proriver, especializada em actividades desportivas no rio.

“Quando fui [a Santiago de Compostela] houve pessoas que me ajudaram a troco de nada, por isso também é uma forma de retribuir”, conta o antigo atleta olímpico. Em 2006, Belmiro fez parte de uma peregrinação especial: partiram de Esposende em canoa, seguiram a remar até Padrón, já em Espanha; e depois dali a pé até Compostela. “Não tinha ligação religiosa a Santiago, mas fui a três Jogos Olímpicos e vários mundiais e nenhum deles me marcou tanto como o caminho”, confessa. Depois de avanços e recuos e três anos de construção, desde Maio do ano passado que a barca repete a travessia ancestral do Cávado ao ritmo de música medieval. A passagem continua a ser gratuita para peregrinos e muitas vezes acaba por transformar-se em passeio. “Dá-me gozo fazer a voltinha e mostrar a paisagem às pessoas”, conta.

O percurso é o mesmo, o caminho é de cada um

Apesar de ser uma travessia mais histórica e bucólica, a maioria dos peregrinos acaba por seguir o itinerário principal. Sobe pelo casario da Apúlia até Fão e dali atravessa a ponte metálica rumo ao centro histórico de Esposende. É o caso de Anna, que encontramos junto ao “caminho das areias”, um pequeno troço arenoso entre pinheiros e campos agrícolas. No Inverno, o trilho torna-se “um bocadinho tortuoso por causa das lamas”, confessa José Costa. Mas, sob o sol da Primavera, nada nos parece mais abençoado que a sombra e o aroma do arvoredo. “Ontem estava muito vento. Era difícil caminhar, porque o vento puxava para trás, mas hoje está agradável”, conta Anna entre os fôlegos da caminhada. Ao terceiro dia, é a paisagem costeira que mais encanta a alemã de 36 anos. “Agora é Primavera, por isso a costa está tão bonita!” Olha em redor e enumera: as flores, a areia, a temperatura, os cheiros.

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A rota de peregrinação pela costa caiu entretanto em desuso e manteve-se relativamente esquecida até agora

Depois de ter feito o “Caminho Francês”, este parece-lhe “mais fácil” e com “menos pessoas”. “É uma boa opção para principiantes”, defende. Mas Anna está longe de ser nova nestas andanças. Costuma caminhar e fazer escalada com frequência, adora a natureza. “Essa é a razão por que faço isto: para ficar 12 dias na natureza, simplesmente a mover-me de sítio para sítio”, conta. “Podes pensar sobre tudo. Regressar a ti mesma.” Apesar de ter crescido no seio de uma “educação católica restrita”, Anna não faz o caminho por motivos religiosos. Ao contrário de Michael, que encontraremos dois dias depois no passadiço junto à praia de Moledo. É a fé que move o polaco de 22 anos. Assim que chegou a Portugal foi a Fátima de autocarro. E agora segue em direcção a Compostela com uns peregrinos italianos que conheceu no Porto. O foco dele, confessa, é o caminho. Não há espaço para turismo no programa. No final de cada etapa, visita brevemente o casario junto ao albergue, vai até à igreja e pouco mais.

As motivações para caminhar até Santiago de Compostela, no entanto, diferem de peregrino para peregrino. Muitos, como Anna ou os quatro ciclistas portugueses, já não o fazem por devoção religiosa. “Há pessoas que querem mudar de vida, por motivos profissionais ou pessoais. Há quem queira fazer caminhadas culturais, conjugando o caminho com visitas a monumentos. Outros fazem-no pela espiritualidade ou integrados em sessões de ioga. E há quem o faça pela superação pessoal, para provar a si próprio que é capaz”, enumera Paulo Almeida Lopes, gerente da Green Walk, uma empresa especializada em actividades turísticas ao ar livre na região Norte. “Tivemos uma norte-americana em cadeira de rodas, por exemplo. Tinha uma equipa de cinco pessoas a ajudá-la. Fez num mês aquilo que habitualmente se faz numa semana, mas chegou a Santiago.”

Igrejas e hospitais, testemunhos do caminho

Do alto do Templo-Monumento do Sagrado Coração de Jesus, em Viana do Castelo, vê-se todo o miolo da cidade. O labirinto medieval, a esquadria moderna dos novos bairros, os estaleiros. Vê-se o rio desaguar no mar e as ondas a bater suaves nos rectângulos arados. Para onde quer que se olhe, o arvoredo irrompe o cume dos cerros. A varanda do zimbório abarca tudo. E é por isso que aqui estamos, ainda que o caminho não suba ao Monte de Santa Luzia. É que daqui podemos seguir o dedo de Miguel Costa e imaginar o percurso jacobino, do Cabedelo à Areosa. Vem pela antiga estrada real, a cortar a mata na outra margem do Lima, até entrar na cidade pela ponte Eiffel lá em baixo. “Antigamente a travessia do rio fazia-se de barca, junto à capela de São Lourenço”, aponta o técnico de arqueologia da autarquia. Em frente à minúscula igreja, solitária nas areias do estuário, ainda se vêem as estacas da primeira ponte, feita em madeira.

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A igreja da Misericórdia, em Viana do Castelo, conserva elementos que testemunham a passagem secular de peregrinos

Ao chegar a Viana do Castelo, continua Miguel Costa, já no centro histórico, “o caminho respeita as ruas medievais” da antiga cidade muralhada. Entra pela extinta porta das Atafonas e sai pela porta de Santiago, assim nomeada devido ao fluxo de peregrinos que por ali passavam. Entre uma e outra, numa ruela do estreito labirinto, espreitamos o “primeiro albergue de peregrinos” da cidade. O “hospital velho” foi fundado em 1468 para dar guarida a mercadores em trânsito e devotos a caminho de Compostela, depois passou a acolher pessoas desfavorecidas. Tornou-se “velho” com a construção de um outro hospital, o da Misericórdia, erguido um século depois, para lá da porta de Santiago, quando a cidade já transbordava as muralhas. Se o velho hospital está actualmente em obras para ser convertido em espaço de recepção ao peregrino, a igreja da Misericórdia ainda conserva elementos que atestam a passagem secular dos caminhantes devotos, nomeadamente num dos painéis de azulejos.

Ao longo do caminho, vamos cruzando pequenos pormenores que testemunham a passagem histórica de peregrinos por ali em direcção a Compostela. “Fomos muito questionados quanto ao rigor [do Caminho Português da Costa], o que obrigou a parte técnica a todo um trabalho de pesquisa histórica para fundamentar o traçado”, admite Aurora Viães. O trajecto marcado no terreno segue, por isso, os estudos feitos sobre a viação que era utilizada antigamente e continua por um ziguezague de vestígios. Conchas de vieira esculpidas na pedra. Alminhas à beira dos trilhos, pequenas capelas, igrejas consagradas a Santiago ou que tenham imagens alusivas à história do apóstolo peregrino. Antigos hospitais ou velhos albergues.

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O trajecto segue os estudos feitos sobre a viação antiga e continua por um ziguezague de vestígios, incluindo alminhas, pequenas capelas ou antigos hospitais, como em Vila Nova de Cerveira

É o caso do actual Hotel da Boega, em Gondarém, concelho de Vila Nova de Cerveira. “Desde o século XVII que fazia o apoio ao peregrino”, conta Paula Ramalho, arqueóloga da autarquia, ao apontar uma inscrição talhada na antiga entrada da propriedade. No final da rua agora denominada Caminho de Santiago, a Quinta do Outeiral nascia como “casa de obrigação a passageiros, peregrinos e mendigos”, lê-se na pedra sobre as nossas cabeças. A maioria dos caminhantes desceria depois até Vila Nova de Cerveira, onde o castelo albergava igualmente um hospital junto à igreja da Misericórdia. Lá em baixo, perto do rio, fica uma das travessias possíveis para Espanha. “Na época medieval tinha de ser feito em barca. Hoje é possível atravessar de ferry em Caminha [para A Guarda] ou nas pontes de Cerveira [ligação a Goiã] ou de Valença [em direcção a Tui].” A última é, no entanto, a mais utilizada actualmente, uma vez que nos outros casos a continuação dos percursos não está sinalizada em território espanhol.

Uma variedade ambiental “extraordinária”

Ao contrário daquilo que o nome pode induzir, o Caminho Português da Costa raramente se abeira da orla marítima. À excepção de um troço entre Póvoa de Varzim e Aguçadoura e, depois, de Vila Praia de Âncora ao areal de Moledo, o trajecto histórico seguia maioritariamente “a meia encosta” ao longo da serra. Por um lado, ia-se de olhos no mar mas suficientemente longe para fugir aos ataques piratas que na altura fustigavam a costa. Por outro, a serra revelava-se não só mais abrigada do sol e do vento violento do Norte, como era mais rica em fontes de água potável. “Temos de pensar o caminho à luz daquilo que também eram as mentalidades e as condições da época”, relembrará Aurora Viães.

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Entre a Areosa e o Carreço, em Viana do Castelo, o caminho aperta-se pela altura dos muros das quintas, muitas delas abandonadas

Por isso, chegados à Areosa, deixamos a planura da faixa costeira para subir por entre os muros altos das quintas, junto à serra de Santa Luzia. “Vamos começar onde termina a estrada de alcatrão”, aponta Nuno Barbosa, guia da Viv’experiencia. A partir daqui, seguimos a sinalética pela antiga estrada real, de ziguezague empedrado, até regressarmos ao alcatrão, já em Carreço. As lajes que pisamos, ora largas, ora em quadriculado de calçada, já são posteriores mas “o traçado é romano”, garante Miguel Costa. “Antes, esta estrada já seria utilizada pelos povos suevos para as trocas comerciais”, conta.

Actualmente, o caminho aperta-se pela altura dos muros das quintas, muitas delas abandonadas, com árvores frondosas a pender os frutos gordos à altura do lanche. Junto à Travessa da Saudade, passamos por uma alminha de 1898, “com uma escultura bastante bem conseguida”. E continuamos o trajecto por baixo de pequenos aquedutos medievais que, 500 anos depois, ainda transportam água das nascentes até às quintas. Mais à frente, uma pequena cascata assinala o ribeiro do Pego, com os seus moinhos de rodízios a descer o curso de água. Dos 21 edifícios de pedra, apenas o “moinho da fada” funciona, recuperado recentemente pelo proprietário.

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Spencer Miller queria percorrer o Caminho Português Central mas é junto à capela da Boa Viagem que o encontramos. "Perdi-me e acabei por dar neste”, ri-se

Já estamos junto à capela da Quinta da Boa Viagem quando Diego e Spencer passam por nós com as mochilas exasperadas de calor. Conheceram-se ontem e hoje decidiram continuar o caminho a dois. Se o colombiano de 36 anos ruma a Santiago pela fé e pelo desafio desportivo, para o norte-americano de 25 anos o trajecto faz parte do currículo escolar. “Numa das aulas estudámos o livro The Philosophy of Walking, de Frederic Gros.” E agora toda a turma está a pô-lo em prática. “Terminei o Caminho Francês e como ainda tinha tempo antes do voo para os Estados Unidos e queria vir a Portugal, decidi fazer este também”, conta Spencer Miller. Na verdade, confessa o norte-americano, o plano era percorrer o Caminho Português Central. “Mas perdi-me e acabei por dar neste”, ri-se.

No interior da capela amarela, despida de mobiliário, destaca-se uma enorme caravela a balouçar do tecto. Miguel avança uma explicação: apesar de o mar nos parecer longínquo daqui, era tradição os barcos darem um tiro de canhão na direcção da capela “para solicitar as graças de uma boa viagem”. O alpendre largo, aponta ainda o arqueólogo antes de partirmos, revela ser uma capela na rota jacobina. Eram construídos para que os peregrinos pudessem resguardar-se e passar a noite.

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A capela da Boa Viagem tem um alpendre tão grande quanto a nave despida - era junto às igrejas que muitos peregrinos escolhiam resguardar-se para passar as noites de viagem

Num percurso de cerca de cinco quilómetros, já lavámos os olhos de mar, limpámos as mãos no riacho e levámos o aroma dos pinheiros e eucaliptos da montanha. “Além da riqueza patrimonial, que acaba por ser um bocadinho transversal a todos os caminhos que passam pela região Norte, conseguimos ter uma variedade ambiental extraordinária”, defende Aurora Viães. Entretanto, já cruzámos quintas, áreas agrícolas e vacas silentes nos pastos. Já reforçámos o estômago no café central de Carreço. E subimos a Vila Nova de Cerveira para um passeio de barco no Minho. Próxima paragem: Santiago de Compostela.

Caminhar, pensar, partilhar. E chegar

É batota, muita batota, bem sabemos. Mas encaixar em três dias um percurso de duas semanas (ou uma, se viéssemos de bicicleta) só é possível à laia de alguns saltos e omissões. Além de muito percurso ganho à força de motor, admitimos. Mas pese-se o motivo: conhecer parte da diversidade de paisagens e de localidades que o trajecto atravessa, descobrir o que se pode visitar pelo caminho e comer muito e bem — que na Península Ibérica é difícil arrematar por menos. É por isso que, chegados ao final do percurso em território nacional — onde termina a sinalética colocada no ano passado —, partimos directos para Santiago de Compostela.

No centro histórico, da catedral às ruelas, o ambiente parece muito mais festivo do que o habitual. Não era assim que tínhamos imaginado a chegada ao terceiro local de peregrinação mais importante da tradição católica. Mal vislumbramos peregrinos por entre os grupos de turistas e as dezenas de galegos com cartazes e autocolantes. “Hoje é o Dia das Letras Galegas”, há-de explicar a guia Maria Chamadoira. Por isso, as calles estão cheias de gente que toca e dança música regional, entre copos de cerveja e doses de tapas. A animação é ensurdecedora.

Ao final da tarde, já depois de visitarmos o interior da catedral e de subirmos aos telhados do edifício, construído como uma fortificação onde não faltam ameias e torres, descemos à Praça do Obradoiro, ponto de chegada para quem vem pelos caminhos portugueses. É lá que encontramos Rita Simões e Zélia Pedro, sentadas de frente para a fachada, ainda em obras de restauro.

Chegaram a tempo da missa das 12h, por isso agora aguardam que a das 19h termine para que os portugueses que conheceram no caminho se juntem a elas nos festejos da chegada a Compostela. “Não falho a missa para agradecer a Santiago o caminho e tudo o que ele me tem dado”, conta Rita. Depois de duas peregrinações a Fátima e de ter feito o Caminho Inglês, a portuguesa regressou a Santiago, desta vez a partir de Valença. “Há muita materialização das peregrinações a Fátima. Tens as carrinhas atrás, apoio na alimentação, camas reservadas. Aqui não”, compara. “Viemos sozinhas, desprovidas de quase tudo, e acabámos por partilhar mais com quem encontrámos. A cultura, a comida, o quarto”, enumera. “Também é uma forma de aliviar o stress do trabalho e desta sociedade.”

Hubert Mayer fez todo o Caminho Português da Costa porque “tinha algumas coisas em que precisava de pensar”. Ao fim de duas semanas, traz a compostela na mão e um sorriso rasgado no rosto. “Foi um grande momento finalmente chegar a Santiago de Compostela depois de 12 dias a caminhar”, conta o alemão de 55 anos. “É uma catedral impressionante.” Hubert começou no Porto, ficou num parque de campismo em Lavra e foi subindo pela Póvoa de Varzim, Viana do Castelo, Apúlia. Os carimbos coloridos da credencial permitem agora relembrar (e confirmar) todo o percurso porque os nomes das localidades, confessa, são “demasiados difíceis” para decorar.

“É a primeira vez que faço um Caminho de Santiago. Escolhi este porque li que tinha menos pessoas, demorava apenas duas semanas e começava no Porto, onde já tinha estado e gostei muito.” Não podia estar mais satisfeito, diz. Do que gostou mais? “Das caminhadas ao longo da costa, das paisagens bonitas, de estar sozinho e pensar muito mas depois também conhecer tanta gente e ouvir as histórias delas”, enumera. “Foi uma óptima experiência.” Confessa que queria sentir o que era caminhar 20 quilómetros por dia, perceber o que o esforço fazia ao corpo e à mente. “Pensei naquilo que vinha para cá pensar e tomei uma decisão. Foi algo que aprendi durante o caminho.” Quanto ao corpo, depois das dores do primeiro dia, começou a sentir-se cada vez melhor e agora está “bastante bem”. “Podia continuar a caminhar”, ri-se. “Tenho mais um dia. Sabe como se vai a Finisterra?”