"Será impossível cumprir as nossas funções" sem muito mais meios
O presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, José Eduardo Figueiredo Dias, avisa para o risco de prescrição de muitos processos sobre contas dos partidos e das campanhas eleitorais. Há processos de 2009 ainda por decidir.
A alteração da lei do financiamento dos partidos e a transferência de competências do Tribunal Constitucional para a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos não foi acompanhada de qualquer reforço de meios para esta estrutura apesar de todos os avisos, alerta o seu presidente, José Eduardo Figueiredo Dias, nesta entrevista, dada por escrito, que é também a primeira que concede desde que assumiu as actuais funções. À “inevitável paralisia” da Entidade acresce outro perigo: a prescrição de centenas de processos de irregularidades das contas dos partidos e das campanhas, por falta de decisão sobre procedimentos mais antigos. Só no TC estão ainda 14 pareceres enviados antes da alteração legislativa e relativas aos anos entre 2009 e 2016, sobre os quais pende um futuro incerto.
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A alteração da lei do financiamento dos partidos e a transferência de competências do Tribunal Constitucional para a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos não foi acompanhada de qualquer reforço de meios para esta estrutura apesar de todos os avisos, alerta o seu presidente, José Eduardo Figueiredo Dias, nesta entrevista, dada por escrito, que é também a primeira que concede desde que assumiu as actuais funções. À “inevitável paralisia” da Entidade acresce outro perigo: a prescrição de centenas de processos de irregularidades das contas dos partidos e das campanhas, por falta de decisão sobre procedimentos mais antigos. Só no TC estão ainda 14 pareceres enviados antes da alteração legislativa e relativas aos anos entre 2009 e 2016, sobre os quais pende um futuro incerto.
A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) fez um estudo comparativo do anterior e do novo quadro jurídico relativo ao financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais. Alguma das conclusões o surpreendeu?
As conclusões desse estudo não nos surpreenderam, na medida em que as alterações em causa foram sendo conhecidas. A surpresa existiu, sim, no facto de o enorme aumento de competências da ECFP não ter sido acompanhado do reforço dos seus meios materiais e humanos. Mas a verdade é que há uma autêntica revolução nesta sede, que se consubstancia na instituição de um novo modelo de fiscalização das contas dos partidos e das campanhas eleitorais. De forma muito resumida, a Entidade das Contas emitia pareceres, cabendo ao Tribunal Constitucional as decisões finais na matéria. A Entidade não tinha qualquer competência em sede de processos de contra-ordenação. Agora, passa a tomar todas as decisões finais nesta matéria, quer em termos de regularidade e legalidade das contas, quer em termos contra-ordenacionais, ainda que com recurso para o Tribunal Constitucional.
O último acórdão do Tribunal Constitucional sobre as contas dos partidos data de Junho de 2016 e era referente às contas de 2012. Podemos dizer que, na prática, as contas dos partidos e das campanhas estão sem fiscalização efectiva há seis anos?
Não. A Entidade das Contas tem continuado a sua actividade de fiscalização das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Cingindo-me apenas à actividade desenvolvida pela Entidade desde que tomámos posse, em Outubro de 2017, foram elaborados os relatórios relativos às contas da campanha para a eleição da Assembleia Legislativa dos Açores, realizada em Outubro de 2016, e das contas anuais dos partidos respeitantes a 2015, estando neste momento a ser proferidas as decisões relativas às contas da campanha das eleições para a Assembleia da República de 2015. E isto a par de uma série de outras actividades da ECFP - elaboração e publicitação de FAQ, início da implementação de um procedimento interactivo com os partidos para controlo das acções e meios de propaganda política, estudos e análises em diversos domínios, por exemplo o estudo relativo ao novo quadro legal -, fundamentais para um adequado funcionamento dos mecanismos de controlo.
A verdade é que não há nenhuma decisão sobre as contas dos partidos entre 2009 e 2014, as últimas campanhas das europeias (2014), das regionais dos Açores de 2012 e da Madeira de 2015, das autárquicas de 2013 e das presidenciais de 2016. Quantos processos estão pendentes neste momento?
Há que distinguir entre os procedimentos pendentes na ECFP e aqueles que, ainda face ao quadro normativo anterior, foram à época enviados para o Tribunal Constitucional. Assim, e apenas quanto aos procedimentos pendentes na ECFP, eles referem-se às contas anuais dos partidos de 2015 a 2017 (estas últimas em fase de entrega pelos partidos), às contas da campanha para as eleições da Assembleia Legislativa dos Açores de 2016 e às contas da campanha das legislativas de 2015. As que refere são procedimentos que, ao abrigo da lei anterior, tinham sido remetidos ao Tribunal Constitucional e sobre os quais este não emitiu acórdãos. Os processos que já tinham sido entregues para decisão no TC estão lá. Ainda não voltaram para a Entidade. São 14 situações de prestação de contas e todas pressupõem uma decisão a tomar pelo TC, ainda que seja, por hipótese, uma decisão de pura remessa para a Entidade.
A ECFP nunca deixou de trabalhar, foi instruindo os processos à luz da lei anterior. Esse trabalho pode agora ser revertido em decisões administrativas?
É óbvio que a ECFP, apesar da sua gritante falta de meios (além dos três membros que compõem a direcção, somos mais um técnico e dois assistentes técnicos. E é tudo!), nunca deixou de trabalhar. Em relação à segunda parte da sua pergunta, ela é muito pertinente: em larga medida, o trabalho que se consubstanciava em pareceres dirigidos ao TC passa a traduzir-se em decisões, imediatamente vinculativas para os seus destinatários. Todavia, ainda que se procure o máximo aproveitamento dos trabalhos já realizados, o regime aplicável é novo, também do ponto de vista material, o que implica uma reanálise de todas as situações já identificadas em momento anterior pela ECFP. Ou seja, todos os processos que não tenham sido objecto de um acórdão do TC terão de ser vistos à luz do novo regime, pelo que não se poderá tratar nunca de uma mera reprodução dos pareceres já elaborados.
Quando espera poder publicar as primeiras decisões da ECFP sobre contas dos partidos e das campanhas? Que processos estão mais perto da decisão?
Estamos neste momento a terminar as decisões relativas às contas da campanha da eleição para a Assembleia da República de 2015, que muito brevemente serão objecto de publicação. Em situação próxima estão as contas relativas às eleições dos Açores de 2016 e as contas anuais de 2015, que apenas pela clamorosa falta de recursos humanos não foram ainda proferidas. Quanto aos processos de contra-ordenação subsequentes, a exiguidade de recursos humanos da ECFP impede-nos, neste momento, de fazer qualquer prognóstico.
Os últimos acórdãos do TC sobre esta matéria, além do atrás referido, são de declaração de prescrição de contra-ordenações de contas anteriores. Esse risco de prescrição pende agora sobre outros processos? Quantos e quais?
Sim, esse risco existe. Neste momento ainda não temos elementos suficientes para conseguir caracterizar e quantificar os processos que poderão estar prescritos.
Concorda com as alterações feitas à lei do financiamento partidário que agora tem de aplicar? A sua opinião foi ouvida no processo da alteração legislativa?
A Entidade das Contas não foi consultada ou ouvida no processo de alteração legislativa que culminou com a publicação da Lei Orgânica n.º 1/2018. Em termos das alterações substantivas ou materiais à lei do financiamento partidário não estou em condições de lhe dar uma resposta genérica, penso que algumas alterações são bem-vindas, outras não tanto. No que directamente respeita à Entidade das Contas, gostaria de assinalar duas situações. Por um lado, foi consagrado um novo modelo de controlo e fiscalização das contas dos partidos e das campanhas que reforça de forma muito substancial as competências e as responsabilidades da Entidade das Contas. Ora, para que se possa cumprir esse papel, é absolutamente fundamental o reforço de meios materiais e humanos da Entidade. Trabalhamos com enormes constrangimentos e o avolumar do trabalho sente-se de dia para dia – apesar da fortíssima determinação e capacidade de trabalho das pessoas que comigo trabalham, que gostaria de publicamente testemunhar. Mas será impossível cumprir as nossas funções se não nos forem atribuídos muitos mais meios materiais e humanos. Falo de pessoas, de assessores, de técnicos (juristas, gestores, contabilistas, técnicos de propaganda política, etc.), de assistentes técnicos e também de meios materiais, em particular de instalações e equipamentos.
Além desta questão, há um aspecto específico na nova lei, que nos diz directamente respeito e que é para nós (e tenho discutido a questão, especialmente com as duas vogais da Entidade) incompreensível: num modelo que passa pelo enorme alargamento das responsabilidades da Entidade, não compreendemos que tenha sido revogada a norma (o artigo 10.º da nossa Lei Orgânica) que atribuía poder regulamentar à Entidade das Contas. Temos mais competências, mais responsabilidades, mas deixámos de poder emitir regulamentos, que se revelavam fundamentais em sede de normalização dos procedimentos relativos às contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Ao revogar-se esta norma serão impedidos níveis de normalização contabilística que se revelavam fundamentais.
Se pudesse alterar alguma coisa na lei, o que alteraria?
Perdemos o poder regulamentar. Em termos específicos este seria, sem dúvida, o primeiro aspecto que alteraria na lei, por ele ser contraditório com o novo modelo. Por outro lado, revela-se fundamental repensar a própria estrutura da Entidade, que claramente não foi desenhada para acolher o nível actual de competências.
Considera que o fim do limite máximo de angariação de verbas pelos partidos representa uma mudança de modelo do financiamento? Porquê?
É evidente que esta regra aponta para um novo paradigma em termos de financiamento, aumentando a importância e o papel do financiamento privado – o que implicará, para nós, níveis de fiscalização muito mais exigentes. Em todo o caso, em termos concretos, penso que é cedo para dizer que esse fim implica uma mudança efectiva no modelo de financiamento, designadamente uma diminuição em termos de dependência das subvenções públicas.
Já viu reforçados os meios humanos e técnicos ou tem alguma expectativa que isso venha a acontecer no futuro próximo?
Não, ainda não vimos qualquer reforço, estando ainda a trabalhar com o quadro de pessoal que existia antes da alteração legislativa. Não obstante já estar amplamente assinalada a claríssima falta de meios da ECFP, em especial junto do presidente do Tribunal Constitucional, que está totalmente ciente dela e muito sensibilizado – como aliás é público – não temos qualquer informação de que esse reforço venha a ocorrer no futuro próximo. Apesar da sua incontornável necessidade e dos perigos que a sua não concretização levanta, em termos da fiscalização efectiva e transparente das contas e dos financiamentos políticos.
Numa carta aos deputados, Costa Andrade escrevia que, se não se alterarem as coisas (nomeadamente com mais meios) ao nível do processo de fiscalização das contas, tal pode redundar numa “inevitável paralisia”. Este risco existe?
Sem dúvida: como resulta da resposta à sua pergunta anterior, a inexistência de resposta por parte dos órgãos responsáveis poderá redundar na “inevitável paralisia” de que fala o presidente Costa Andrade. Acompanho-o completamente nos seus receios.
No próximo ano haverá três campanhas eleitorais – europeias, regionais da Madeira e legislativas. Acha que nessa altura os partidos já conhecerão as decisões das últimas campanhas do mesmo tipo à luz da nova lei?
No que toca à vontade e à determinação da Entidade, dir-lhe-ia sem rodeios que sim. É esse o nosso desejo e a nossa vontade. Como já lhe disse, as decisões das contas da campanha eleitoral para a Assembleia da República de 2015 estão em fase de conclusão. Quanto às decisões das contas das campanhas das eleições europeias de 2014 e das eleições da Madeira de 2015, há que ter em consideração que respeitam a procedimentos que ainda estão junto do TC, pelo que neste momento ainda não podemos prever ou antecipar timings.
Apesar de tudo, considera que o modelo de uma entidade administrativa no âmbito do Tribunal Constitucional é eficaz para a fiscalização dos financiamentos partidários? Ou ficaria mais bem munida de instrumentos técnicos se funcionasse na órbita do Tribunal de Contas?
As nossas preocupações por agora são outras – e são muitas! Sinceramente, não estamos ainda em condições de fazer uma reflexão de tipo estrutural, como a que está subjacente a esta pergunta.