Inventar João de Deus
A inventada biografia de uma personagem tornada ícone por um cinema que é tanto uma outra expressão da escrita quanto uma consumada arte da imagem em movimento.
A Paixão segundo João de Deus apresenta-se como “biografia paródica de João de Deus” (p.8). Resulta, nas malhas que a ficção tece, de um encontro fortuito do narrador com o objecto da futura narrativa. Fernando Pessoa funcionará para João de Deus como este para António Cabrita. O poeta sonda permanentemente os passos do livro de António Cabrita. Desde o mendigo que “é” o João de Deus recitador compulsivo da Tabacaria, às múltiplas citações, paráfrases e alusões pessoanas que pespontam o texto de A Paixão. Até, ainda, à atribulada busca pela “piquena suja que comia chocolates” (p.20) no poema de Pessoa. A narrativa, essa, tomará forma sob a roupagem de uma entrevista concedida pelo próprio João de Deus, personagem e disputado alter-ego de João César Monteiro.
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A Paixão segundo João de Deus apresenta-se como “biografia paródica de João de Deus” (p.8). Resulta, nas malhas que a ficção tece, de um encontro fortuito do narrador com o objecto da futura narrativa. Fernando Pessoa funcionará para João de Deus como este para António Cabrita. O poeta sonda permanentemente os passos do livro de António Cabrita. Desde o mendigo que “é” o João de Deus recitador compulsivo da Tabacaria, às múltiplas citações, paráfrases e alusões pessoanas que pespontam o texto de A Paixão. Até, ainda, à atribulada busca pela “piquena suja que comia chocolates” (p.20) no poema de Pessoa. A narrativa, essa, tomará forma sob a roupagem de uma entrevista concedida pelo próprio João de Deus, personagem e disputado alter-ego de João César Monteiro.
Não é a primeira vez que a escrita de António Cabrita se aproxima de um registo pertencente a outra linguagem artística. Em Inferno (com Maria Velho da Costa, Íman Edições, 2001), por exemplo, abeirava-se de Camilo, o “inexorável romancista” (expressão de Abel Barros Baptista), para fazer o guião de um programa televisivo por vir (e que não veio). Em A Paixão segundo João de Deus, faz o cerco ao mais escritor dos cineastas portugueses, para produzir uma homenagem, sem pinga de reverência, escrita por quem foi crítico de cinema, e tem praticado ficção, poesia e teatro com a mesma entrega e aproveitamento. As estações daquele Inferno eram títulos de obras de Camilo, em sequências que são enérgicos avanços e recuos na cronologia e na biobibliografia camilianas; em A Paixão segundo João de Deus, tudo decorre batido pelas violentas rajadas do “espírito digressivo” e da “luxuosa fantasia verbal” (p.154) do próprio João de Deus — o reinventado por António Cabrita. E na fidelidade ao “tom inimitável de João de Deus” (p.62)
O inverosímil e o burlesco são cravados a tantas das películas de César Monteiro – senão roubados descaradamente ao “malandro”, como será mimoseado, em A Paixão. Uma recusa de plausibilidade que, interessantemente, pisa os pés com força no chão concreto do que nos parece, sem grande esforço, o real quotidiano. Do mesmo modo, avultam no texto de Cabrita aspectos notórios na carteira de estilos do cineasta, como o uso abundante de provérbios, ditos sentenciosos carregados de saber ladino e malícia de garoto ruim, a sumptuosidade barroca do léxico, da frase bem torneada, inimiga declarada do lugar-comum. Decerto herança desses “pícaros do século XVII ibérico” (p.7), que comparecem logo no pórtico desornado desta Paixão. E aquele carácter “proverbial”, às vezes, não quer dizer que João de Deus use sempre um provérbio canónico. Em certos pontos, é mesmo a sua criativa rebeldia a inventá-los: “quem pisa a flor da abóbora não lhe provará a sopa” (p.15); “o ouro é o minete da alma” (p.93). Ou a situar as suas sentenças entre a falsa segurança do ditado e a leveza meditada haiku: “O sol não amorna a neve, dá-lhe apenas mais brilho.” (p.59)
A “intromissão” do léxico cinematográfico faz-se de modo subreptício, quase oculto — “Interceptei-a no primeiro patamar da escada. Grande plano da minha mão a prender-lhe o pulso fino, que imediatamente torço sobre as costas.” (p.39) Quando João de Deus pretende referir-se a só ter começado a falar quando já tinha três anos, compara da seguinte forma: “como se tivesse nascido na altura do mudo” (p.46). Na sequência dessas contaminações, há paralelos mais ou menos evidentes entre determinados momentos da narração de António Cabrita, levada pelas mãos enganadoras de João de Deus, e as sequências em que César Monteiro filmou o mesmo Deus. É o caso da cena de vigilância, que João de Deus monta no pátio onde reside a sua vítima, e que espelha aquela em que o mesmo João espia a jovem que se arranja no quarto de banho da casa de hóspedes, em Recordações da Casa Amarela. Em Vai e Vem, quando João Vuvu encontra Fausta (reencarnação do eterno e brilhante contraponto do César Monteiro actor, a actriz Manuela de Freitas), esta fala-lhe de uma projectada viagem de João à Etiópia. Uma ideia de expedição que António Cabrita expande, e em torno da qual efabula uma capitosa fantasia abissínia. Em Cabrita, João de Deus forma uma réplica ao João Vuvu de Vai e Vem, quando este, rosnando um “Vai chamar pai a outro”, atira ao rio o “rico filho” Jorge, regressado do “xilindró” — “O mundo está cheio de broncos por causa da ternura filial, da meiguice.” (p.55) Se, em O Último Mergulho, César Monteiro fazia o seu cameo, dirigindo-se a uma retrete pública, num arraial de Santo António, em A Paixão segundo João de Deus tem aparições igualmente fugidias. Geralmente, no papel — ou nada papel? — desse “tiranete pouco estimulante” em que se malha, em Vai e Vem e que, na Paixão, atende à chamada pelos motivos piores: “o João César faltava a quase todas as promessas que fazia” (p.32). A dada altura da Paixão há uns versos que se “recortam nos lábios” (p.102) de João. São retirados, nesse momento da narrativa, de Os Lusíadas: como aqueles que se declamavam, “para trás e para a frente”, às suas ordens, segundo o relato de Jacinta, em Vai e Vem. Esse momento, fugazmente captado, em que João de Deus recorda: “cravei vintes ao [Fernando] Lopes” (p.26), ecoa, possivelmente, aquele, de Recordações da Casa Amarela, em que Deus pede os mesmos “vintes” a Ferdinando.
Citando, de fugida, António Patrício, dirá João de Deus: “Há que aproveitar o que de bom haja na tradição. Eu não invento nada, eu incorporo.” (p.114) Como em César Monteiro, as citações cultas têm a espontaneidade e o desembaraço de um livro sacado do bolso. Pense-se no momento de Recordações da Casa Amarela em que João de Deus é revistado, na esquadra de polícia, e lhe ordenam que esvazie os bolsos, saindo de um deles um Hölderlin “celestial”, que não “policial”, como pretendia a bronca presunção do subchefe. A prontidão com que saltam ao caminho da Paixão as glosas e alusões, as simples chamadas a um nome, possuem o mesmo estalar irreflectido e automático de uma ponta-e-mola — “esta chega-me do sr. Artaud, que reli ontem” (p.79). De um modo igualmente desprendido ao que assume João Vuvu, quando, em conversa com Jacinta, curiosamente acerca de João de Deus, calculava que o poema de Ezra Pound, Hugh Selwyn Mauberley, que a jovem cita, estará perdido por qualquer estante da casa, “submerso em pó, submerso em pranto”. A nota cultural nunca o é, porque não representa um pretenso movimento de elevação, mas apenas um gesto para tornar mais exacto e firme aquilo que se diz. À maneira do Senhor de Montaigne, que João cita, como quem sugerisse um lenitivo, falando com Bardamu, em As Bodas de Deus. Tanto mais que essas referências podem ser puxadas pelas situações menos propícias, como quando João de Deus se deixa sodomizar, em busca de espécimes para a sua colecção de pêlos púbicos, então, ainda em estado embrionário – e lhe acode a referência de Genet. Não, como é óbvio, por qualquer ufania literata, mas como exemplo de coragem, merecedor do devido “res-pei-tin-ho” (p.58)
Corpo frágil, incerto o seu dono se estará “mais do lado dos sólidos ou dos perfumes” (p.56) — um passo que lembra os “perfumes” do Paraíso do Gelado, em A Comédia de Deus —, João de Deus é, sobretudo, um corpo estranho. Intrusão desobediente no normal fluir das coisas pacatas, Deus é uma ficção demasiado real, demasiado ancorada na realidade de que emana. “Um neo-Dada do Vává” (p.145), como se lerá numa página de jornal que lhe é dedicada. Mas a sua natureza é, decididamente, da ordem da transgressão, do ataque e do golpe furtivo. São os seus ossos que o sabem — “Eu seria sempre o que não nasceu para isso” (p.30).
A narrativa de António Cabrita é uma reinvenção. Pressupõe uma leitura atentíssima da explosiva gramática do autor de Silvestre; responde-lhe com um notável poder de inventiva e criatividade. Capaz de criar a partir dos indícios mais subtis, aqueles lançados pela cinematografia de César Monteiro, Cabrita arquitectou uma ficção ginasticada, de linguagem enriquecida pelas manobras do vocabulário e da frase, aquecida ao lume de uma imagética poderosa e disruptiva. Uma desobediência que riposta à transgressão original.