É agora que começamos a conhecer Isaura

Depois da vitória no Festival da Canção com O jardim, chega o álbum de estreia de Isaura. Human apresenta-nos uma autora pop, com um fraquinho pelos anos 80 e que importa não perder.

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Human é um álbum dividido ao meio. Quando chega a The Crossover Intermission deixa para trás um registo mais pop e vívido, deixando-se escorregar para tons mais sombrios, dominados por sintetizadores saturados e batidas de um hip-hop esfacelado. Há uma razão bem prosaica para esta cisão, longe de qualquer intenção conceptual. Isaura estava ocupada a versejar rimas de alcance universal, tendo como alvos a gestão do tempo, as prioridades que cada um decide privilegiar na sua vida, sem querer entrar por “temáticas muito grandes e complexas”, ao mesmo tempo que rabiscava letras sobre a insegurança que sentia ao meter as mãos na gravação do seu álbum de estreia. Essa insegurança, no entanto, motivava recados de encorajamento em causa própria (como em Don’t give up e High away, responsáveis pelo excelente arranque do disco), embalados com um tratamento sonoro que é revelador da firmeza com que atacava essas fraquezas.

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Human é um álbum dividido ao meio. Quando chega a The Crossover Intermission deixa para trás um registo mais pop e vívido, deixando-se escorregar para tons mais sombrios, dominados por sintetizadores saturados e batidas de um hip-hop esfacelado. Há uma razão bem prosaica para esta cisão, longe de qualquer intenção conceptual. Isaura estava ocupada a versejar rimas de alcance universal, tendo como alvos a gestão do tempo, as prioridades que cada um decide privilegiar na sua vida, sem querer entrar por “temáticas muito grandes e complexas”, ao mesmo tempo que rabiscava letras sobre a insegurança que sentia ao meter as mãos na gravação do seu álbum de estreia. Essa insegurança, no entanto, motivava recados de encorajamento em causa própria (como em Don’t give up e High away, responsáveis pelo excelente arranque do disco), embalados com um tratamento sonoro que é revelador da firmeza com que atacava essas fraquezas.

Só que a meio da composição de Human a vida de Isaura seria abalada com violência. A morte da sua avó deixá-la-ia “devastada, destroçada”, sem vontade de trabalhar em música alguma. “E então percebi que tinha duas opções”, conta ao Ípsilon. “Ou começava tudo outra vez, e nem sabia se tinha forças para isso; ou assumia que o álbum não ia ser aquilo que tinha imaginado. Uma vez que aquilo que faço na música é sempre tão biográfico e tão verdadeiro decidi que a história era esta.” A segunda metade do álbum é, por isso, Isaura a lidar com a perda e a reconhecer que “quase nada é aquilo que planeamos”, acolhendo os acidentes e as limitações como parte inteira do percurso. Daí o título Human, assunção plena de uma sucessão de fraquezas e imperfeições.

Tinha já sido esta perda a originar O jardim, a canção com que Isaura se apresentou a um público mais alargado – depois de passagens por Ídolos e Operação Triunfo – enquanto autora, graças à participação e posterior vitória no Festival da Canção. O universo sonoro do seu álbum de estreia não rompe radicalmente com esse tema. Se esquecermos que aqui não há rasto da intérprete Cláudia Pascoal, “a grande diferença é a língua”, sugere a cantora/compositora acerca deste punhado de canções vocalizado em inglês. “Ainda que no Jardim tenha posto uma guitarra acústica e um piano mais aberto – e isso muda bastante as coisas.”

Só que aquilo que O jardim não revela com a mesma assertividade é a aproximação de Isaura a uma pop electrónica na linha daquilo que faz, por exemplo, Jessie Ware, ou até das canções descarnadas e delicadas dos XX. Há nestes nomes – a que Isaura junta ainda Haim, The Aces ou Khalid – a herança clara de um recurso a guitarras e/ou sintetizadores e a um catálogo melódico patenteados na década de 80. Nascida em 1989, Isaura cresceu nos anos marcados pela explosão dos Nirvana e do trip-hop, mas diz-se atraída pela “reinvenção dos anos 80” surgida a reboque de um movimento revivalista.

O primeiro indício desse apego por um tempo anterior ao seu nascimento, admite a cantora, foi a sua pronta adesão ainda em adolescente à mixtape caseira. Mas em que, ao invés do áudio, era nas cassetes VHS que ela e a prima trocavam as músicas de que gostavam e se evangelizavam mutuamente. “Essa cultura da cassete está muito presente em mim”, reconhece. “Acho que é também por isso que nas minhas canções gosto do lo-fi, gosto de certos sons sujos que me trazem uma nostalgia e um prazer quaisquer que me parece virem daí.”

Foi o lastro dessa sonoridade que Isaura quis colocar no início de Human, ligando este seu presente à edição do EP Serendipity pelas NOS Discos há três anos. Foi com Serendipity que começou a ter certeza do caminho pessoal que queria percorrer. Após uma paragem auto-imposta de um ano em 2011, durante a qual quase não cantou por estar ainda a digerir uma experiência “emocionalmente muito forte” – a ligeireza das críticas nas redes sociais por alturas da participação na Operação Triunfo começava já então a deixar marcas – fez uma primeira tentativa de gravar as suas canções em estúdio. E serviu para lhe mostrar que precisava de paciência até descobrir que sonoridade queria imprimir nas suas canções. Essa primeira visita ao estúdio foi, por isso, enfiada de pronto na gaveta. “Era só mais uma canção, não estava a fazer nada de diferente”, resume. Só quando foi apresentada aos produtores Raez e Cut Slack para gravar Useless a revelação se deu por inteiro e percebeu que as canções podiam não apenas ser da sua autoria mas definir um espaço seu.

Desafio mainstream

Aquilo que ouvimos em Human é uma sonoridade que faria de Isaura uma artista pop a raiar o mainstream nos mercaodos anglo-saxónicos. Por aqui, no entanto, a cantora acredita que o seu lugar é de “artista de nicho”, está presa num limbo, entalada entre a pop e a música dita alternativa. E não é apenas uma questão de escala, de nos Estados Unidos ou em Inglaterra esse nicho poder ter uma dimensão ‘gulliveriana’. É também uma questão da natureza da pop local – e, acrescente-se, da língua em que canta. É indesmentível, ainda assim, que a sua presença na multinacional Universal a faz sentir mais próxima de músicos com quem partilha temas como Diogo Piçarra e a leva a dizer-se “mais atenta ao que se passa no mainstream”. “Acho que é um bom desafio para mim tentar perceber em que zona do mainstream é que consigo viver bem e com qual zona me identifico.”

Human é também um álbum de prospecção, de garimpa. Embora partilhando créditos com Cut Slack, Karetus, Diogo Piçarra, Pedro, Lhast e Fred Ferreira, Isaura assume a título individual a produção de vários temas, resultado de uma aprendizagem que tem por fim não apenas controlar melhor o processo criativo mas também falar a mesma linguagem que os seus convidados, de forma a encurtar a distância entre aquilo que imagina – “e que vem de tanta coisa da nossa educação, dos nossos sentimentos, da nossa sensibilidade”, diz – e aquilo que consegue pôr em prática, dentro das barreiras que ergue para delimitar a sua identidade musical.

É essa identidade que começamos a entrever em Human. Da vocação pop límpida e clarividente da primeira metade do disco – e que anuncia uma autora, em temas como Closer, a manter seriamente debaixo de olho –, ao interesse pela elasticidade do formato canção que toma conta da segunda parte – ainda a descobrir possibilidades, mas com talento suficiente para não se deixar abater pelo risco. Human é o disco em que começamos a conhecer Isaura. E que nos oferece a certeza de que tem muito por onde crescer.