A dança (e a vida) no exílio

Esta sexta, Salia Sanou vem ao Rivoli com Du Désir d’Horizons, um espectáculo inspirado pelo período em que o coreógrafo orientou oficinas de dança em campos de refugiados em África.

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Laurent Philippe

Há mentiras que vêm por bem. Aos 24 anos, Salia Sanou (Léguéma, 1969) disse aos pais que ia deixar o Burkina Faso. Que ia para França continuar os estudos em Direito, tornar-se advogado. “Menti”, conta, entre risos, ao PÚBLICO. Foi fazer outra coisa, bem mais interessante: dançar na companhia da coreógrafa francesa Mathilde Monnier, que o recrutou para a sua equipa de bailarinos depois de o ter conhecido no Burkina Faso, nas audições para o espectáculo Pour Antigone (1993).

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Há mentiras que vêm por bem. Aos 24 anos, Salia Sanou (Léguéma, 1969) disse aos pais que ia deixar o Burkina Faso. Que ia para França continuar os estudos em Direito, tornar-se advogado. “Menti”, conta, entre risos, ao PÚBLICO. Foi fazer outra coisa, bem mais interessante: dançar na companhia da coreógrafa francesa Mathilde Monnier, que o recrutou para a sua equipa de bailarinos depois de o ter conhecido no Burkina Faso, nas audições para o espectáculo Pour Antigone (1993).

Em três dias, tudo mudou na vida de Salia Sanou. “Quando a Mathilde Monnier me convidou para trabalhar com ela, fiquei muito surpreendido. Adorava dançar, dançava desde criança, mas nunca me tinha passado pela cabeça ir para a Europa dançar profissionalmente.” Passados dois anos, abriu o jogo aos pais e aos amigos. “Primeiro os meus pais ficaram em choque, mas depois encorajaram-me”, recorda. “E perceberam que podia ajudar a família financeiramente. Correu tudo bem.”

Hoje, Salia Sanou é um dos coreógrafos africanos mais bem cotados no circuito da dança contemporânea. Traz esta sexta-feira ao Teatro Municipal Rivoli, no Porto, Du Désir d’Horizons, um espectáculo em estreia nacional que tem uma longa história por trás. Há cinco anos, no âmbito de uma iniciativa da fundação African Artist for Development, Sanou e alguns bailarinos da sua companhia, a Mouvements Perpétuels, orientaram uma série de actividades em campos de refugiados no Burundi e no Burkina Faso. “Os refugiados deixam quase tudo para trás. Perdem muita coisa. Perdem a sua dignidade, perdem a sua cultura. A prioridade num campo de refugiados é sobreviver. Fazer ateliers de dança permitiu-lhes valorizarem-se a si próprios, terem algo para partilhar e fazer em conjunto, recuperando algumas das suas raízes culturais”, explica o coreógrafo.

No final do projecto, “toda a gente chorou” – mesmo aqueles adolescentes com cara de poucos amigos que à chegada de Salia Sanou diziam que só dançariam se ele lhes desse dinheiro. “Chorámos todos porque aquilo lhes fazia bem”, resume Sanou. Na altura, não lhe passou pela cabeça fazer um espectáculo a partir daquela experiência, mas a verdade é que ela não lhe saiu da cabeça. Não foi por acaso que algum tempo depois começou a construir Du Désir d’Horizons. “Nos campos de refugiados vês muitas coisas. Observei as várias dinâmicas que existem nesses lugares. Há crianças por todo o lado, mas elas não têm plena consciência do que se passa. Vão-se divertindo, são muito activas. Há os adolescentes, que podem ser muito agressivos, muito chateados. Depois tens as mulheres e as mães, que são muito doces. São elas que supervisionam o que ali se passa, que estabelecem a comunicação. Os homens adultos sentem-se muito perdidos, são como zombies. Nota-se pelas expressões faciais, pela forma como se mexem”, descreve o coreógrafo. “Perceber estas diferentes dinâmicas e estados emocionais foi muito importante para mim enquanto bailarino e coreógrafo.” E foi isso que lhe serviu de “matéria” para traçar a coreografia deste espectáculo.

África ou o mundo, hoje

Em Du Désir d’Horizons, Salia Sanou quis trabalhar o tema do exílio. Fê-lo através “da postura, dos estados emocionais, da ligação com o outro, do isolamento, da alteridade”. “Há vários momentos no espectáculo em que me foco na individualidade. Mesmo se há movimento de grupo, nenhum bailarino é igual a outro. Cada um traz a sua história, o seu corpo, a sua visão da questão do exílio”, esclarece o coreógrafo. A transitar pela coreografia há uma contadora de histórias que dá voz a excertos do livro Limbes/Limbo, Un hommage à Samuel Beckett, da escritora franco-canadiana Nancy Huston, com quem Salia Sanou está agora a colaborar na sua nova criação, uma espécie de segundo capítulo de Du Désir d’Horizons. “Para mim, esse texto fala sobre o exílio. É importante criar passagens na peça onde há voz e dar voz às experiências dos refugiados.” Originalmente, este espectáculo contava com dois refugiados que Sanou conheceu durante os ateliers nos campos. Contudo, eles não vão estar no Rivoli: a embaixada do Burkina Faso em França não lhes concedeu os vistos para viajarem, à falta de “provas de que não iriam sair da Europa”.

Apesar de o elenco da peça ser composto por bailarinos de várias etnias africanas (e não só), Salia Sanou deixa bem claro que não quer fazer de Du Désir d’Horizons uma montra de danças tradicionais do continente. “Se vires referências de danças tradicionais é porque estão ao serviço da coreografia e da história”, sublinha. “Nós vivemos neste tempo e criamos neste tempo.” Desde 1995, ano em que fundou a companhia Salia nï Seydou com o coreógrafo Seydou Boro, que Salia Sanou procura combater a visão exoticizada e estereotipada do Ocidente perante a produção cultural africana. “Muita gente nessa altura, e ainda agora, pensa que África são só tambores. Quisemos mostrar que há linguagens contemporâneas em África. Há muitos criadores, muitos jovens artistas que fazem óptimas coisas, mas que não têm oportunidades de vir apresentá-las à Europa”, nota Sanou, que também co-dirige com Seydou Boro o centro coreográfico CDC la Termitière, em Ouagadougou, onde se realiza a bienal de dança Body Languages

Ainda que o circuito europeu de dança contemporânea continue demasiado restrito e demasiado branco ("É uma realidade", admite), o coreógrafo considera que “tem havido uma evolução de mentalidades”. A mudança, diz, depende também dos programadores. “É preciso ir a África, como foi o Tiago [Guedes, director artístico do Teatro Municipal do Porto]. Há muitos programadores que têm medo”, diz. “Não é uma questão de meios. É o medo de abrir outras portas. Ficam no seu lugar de conforto e pensam que se mudarem alguma coisa na programação o público não vai aceitar bem. Mas o público é inteligente.”