Europa está a passar de importadora a fabricante de drogas ilícitas

Relatório Europeu sobre Drogas 2018 traça uma radiografia ao mercado das drogas ilícitas nos 28 Estados-membros da União Europeia, a que se somam a Turquia e a Noruega.

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Nelson Garrido

A produção e a oferta de drogas ilícitas na Europa estão a aumentar, segundo o Relatório Europeu sobre Drogas 2018. Sendo um tradicional destino das drogas que são traficadas a partir da América Latina, Ásia Ocidental e do Norte de África, a Europa começa agora a afirmar-se como fabricante de muitas das novas drogas sintéticas produzidas em laboratório e que têm como destinos as Américas, a Austrália, o Médio e o Extremo Oriente e a Turquia.

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A produção e a oferta de drogas ilícitas na Europa estão a aumentar, segundo o Relatório Europeu sobre Drogas 2018. Sendo um tradicional destino das drogas que são traficadas a partir da América Latina, Ásia Ocidental e do Norte de África, a Europa começa agora a afirmar-se como fabricante de muitas das novas drogas sintéticas produzidas em laboratório e que têm como destinos as Américas, a Austrália, o Médio e o Extremo Oriente e a Turquia.

De igual modo, “o aumento da produção de cannabis de elevada potência na Europa parece ter afectado as actividades dos produtores de cannabis localizados fora da União Europeia, “conforme demonstrado pela potência mais elevada da resina de cannabis introduzida ilegalmente na Europa a partir de Marrocos”.

No caso da cocaína, “a apreensão de 79 quilos de pasta de coca em Espanha e de 7 quilos em Itália sugere a existência de laboratórios ilícitos que produzem cloridrato de cocaína na Europa”, lê-se no mesmo relatório, para concluir consequentemente que está a haver uma “alteração nas estratégias de produção de algumas organizações criminosas, dado que anteriormente os laboratórios de cocaína existentes na Europa eram maioritariamente instalações de extracção secundária, onde a cocaína era recuperada de materiais nos quais tinha sido incorporada, tais como vinhos, roupas ou plásticos”.

Em 2016, foram feitas mais de um milhão de apreensões de estupefacientes, segundo o relatório divulgado esta quinta-feira, sendo que a Espanha, o Reino Unido e a França perfazem 60% de todas as apreensões de droga na União Europeia, aponta o relatório. Outro dado: mais de 92 milhões de pessoas já experimentaram uma droga ilícita e cerca de 1,3 milhões receberam tratamento por consumo.

Cocaína: grau de pureza atingiu o nível mais elevado da última década

A cocaína é o estimulante ilícito mais consumido na Europa. Cerca de 2,3 milhões de jovens adultos (com idades entre os 15 e os 34 anos) consumiram esta droga no último ano, nos 28 Estados-membros da União Europeia. De resto, o estudo mais recente sobre resíduos de droga nas águas residuais municipais revelou que, entre 2015 e 2017, houve um aumento dos resíduos de cocaína em 26 de um total de 31 cidades, com as maiores subidas a serem registadas na Bélgica, Países Baixos, Espanha e Reino Unido.

Com o preço a manter-se estável, o grau de pureza da cocaína nas ruas atingiu em 2016 “o nível mais elevado desde há uma década”.

O número de apreensões também aumentou. Em 2016, foram comunicadas cerca de 98 mil apreensões (90 mil em 2015), num total de 70,9 toneladas. 

Em termos históricos, a maior parte da cocaína entra na Europa através da Península Ibérica, mas as apreensões mais recentes levam os peritos europeus a acreditar que esta rota perdeu importância e que a cocaína começou a ser gradualmente traficada na Europa através de grandes portos de contentores. Em 2016, a Bélgica ultrapassou a Espanha como o país com o maior volume de cocaína apreendida (cerca de 30 toneladas, ou seja, 43% do volume total estimado na União Europeia).

O relatório aponta também um aumento do número de pessoas que em 2016 iniciaram pela primeira vez tratamento especializado relacionado com cocaína: 30.300 utentes em 2016, um número superior em mais de um quinto em relação a 2014. No total, havia, em 2016, mais de 67 mil utentes a iniciar tratamento para a dependência da cocaína, dos quais 8300 tinham como hábito fumá-la na forma de crack. A cocaína foi, além disso, a segunda droga mais reportada nos tratamentos hospitalares de urgência relacionados com drogas, numa rede de 19 hospitais “sentinela”.

Em 2013, o mercado de retalho da cocaína fora avaliado num valor mínimo de 5,7 mil milhões de euros.

Cannabis continua a liderar nos consumos

Cerca de 17,2 milhões de jovens europeus entre os 15 e os 34 anos de idade consumiram cannabis em 2016, nos 28 Estados-membros da União Europeia. Ao mesmo tempo, cerca de 1% dos adultos europeus (15-64 anos) consomem-na diariamente ou quase diariamente, o que faz da cannabis a droga ilícita mais consumida na Europa.

Com um total de 763 mil apreensões em 2016, a cannabis esteve envolvida em 77% das infracções por consumo ou posse e foi responsável por 45% dos novos utentes de programas de tratamento da toxicodependência na Europa. Em 25 países com dados disponíveis para análise, havia 75 mil pessoas em tratamento por problemas relacionados com cannabis, contra as 43 mil de 2006.

A legalização da cannabis nalguns países do continente americano levou à emergência de um mercado comercial de cannabis recreativa e ao desenvolvimento de produtos comestíveis e líquidos para vapear, cujo impacto na Europa tem ainda de ser avaliado, recomendam os peritos. 

Novas substâncias: 670 psicoactivos sob vigilância

No ano passado, foram comunicadas 51 novas substâncias psicoactivas ao Sistema de Alerta Rápido da União Europeia – a um ritmo de mais de uma por semana. Entre cannabinoides sintéticos, opiáceos, catinonas e benzodiazepinas, as novas substâncias introduzidas no mercado continuam, ainda assim, a ser inferiores aos anos de pico (em 2015 tinham sido 98, 101 em 2014). Os peritos europeus admitem que esta redução possa dever-se “às medidas adoptadas pelos governos europeus para proibir novas substâncias, em especial a sua venda livre”.

No final do ano passado, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA, na sigla inglesa) monitorizava mais de 670 novas substâncias psicoactivas (eram 350 em 2013).

Entre as novas substâncias preponderam os cannabinoides sintéticos, frequentemente vendidos como “misturas de ervas para fumar” e que, em 2016, somaram mais de 32 mil apreensões, num aumento substancial relativamente às 10 mil apreensões de 2015.

Já na categoria dos opiáceos sintéticos, que imitam os efeitos da heroína e da morfina, chegando a ser vendidos sob a forma de vaporizadores nasais, foram detectadas 13 novas substâncias no ano passado – 38, se recuarmos a 2009. O consumo destas novas substâncias tem levantado novos desafios, nomeadamente no meio prisional, dada a facilidade com que podem ser traficadas (liquefeitas e pulverizadas em papel ou em tecidos) e a sua difícil detecção em testes de drogas.

Algumas destas novas substâncias são produzidas a granel por empresas químicas e farmacêuticas da China, de onde são expedidas para a Europa, “onde são transformadas em produtos acabados, embaladas e vendidas”. Outras poderão ter origem em medicamentos que são desviados da cadeia de abastecimento legítima, havendo ainda casos em que a produção é made in Europa. Algumas são vendidas abertamente em lojas físicas especializadas e na Internet “de superfície” sob a etiqueta de “euforizantes legais” de marca.

Apreendido meio milhão de comprimidos com novas benzodiazepinas

Os peritos europeus estão preocupados com o aparecimento, nas ruas e na Internet, de novas benzodiazepinas (ansiolíticos, sedativos e hipnóticos) que não estão autorizadas como medicamentos na União Europeia. Algumas são vendidas em comprimidos, cápsulas ou pós com os seus próprios nomes, enquanto outras adoptam falsamente o nome de ansiolíticos frequentemente prescritos como o diazepam e o alprazolam.

Actualmente, o observatório europeu está a monitorizar 23 novas benzodiazepinas, três das quais foram detectadas pela primeira vez na Europa em 2017. No ano anterior, em 2016, foram apreendidos mais de meio milhão de comprimidos que continham novas benzodiazepinas, cerca de dois terços mais do que em 2015.

A prescrição destes medicamentos a consumidores de drogas de alto risco, embora feita com objectivos terapêuticos, acarreta riscos, porque as doses podem ser alteradas, contribuindo assim para o aumento da morbilidade e mortalidade neste grupo. Aliás, "cerca de 40% dos utentes que iniciaram tratamento por consumo de opiáceos como droga principal indicaram as benzodiazepinas como segundo droga problemática".

A disponibilidade das benzodiazepinas, tanto das já existentes como das novas, no mercado de drogas ilícitas parece estar a aumentar em alguns países e essas substâncias são conhecidas por desempenhar um papel importante, ainda que frequentemente ignorado, nas mortes por overdose de opiáceos.