Faltam mais de 530 anestesistas nos hospitais

As saídas não compensadas para o sector privado e para o estrangeiro e a alteração do regime de horário de trabalho são só algumas das razões que justificam o hiato que existe entre os anestesistas ao serviço e os que seriam necessários. Que se agravou em relação a 2014.

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MARIA JOAO GALA

Faltam 534 médicos anestesistas no serviço público de saúde, incluindo regiões autónomas da Madeira e dos Açores. Este número representa 46,7% do total de 1142 profissionais que estas unidades têm efectivamente nos quadros. O défice eleva-se para 541 profissionais quando somadas as necessidades dos pólos de Lisboa e Porto dos hospitais militares (onde trabalham actualmente 16). O cenário piorou em comparação com 2014, quando se tinha detectado a falta de 467 especialistas.

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Faltam 534 médicos anestesistas no serviço público de saúde, incluindo regiões autónomas da Madeira e dos Açores. Este número representa 46,7% do total de 1142 profissionais que estas unidades têm efectivamente nos quadros. O défice eleva-se para 541 profissionais quando somadas as necessidades dos pólos de Lisboa e Porto dos hospitais militares (onde trabalham actualmente 16). O cenário piorou em comparação com 2014, quando se tinha detectado a falta de 467 especialistas.

Os dados fazem parte do Censos Anestesiologia 2017, uma iniciativa semelhante a outra que tinha sido levado a cabo em 2014. O Colégio de Anestesiologia da Ordem dos Médicos enviou, por email, um inquérito às 53 instituições hospitalares públicas solicitando dados sobre a organização, os recursos humanos e logística dos serviços relativos à semana de 14 a 21 de Maio de 2017.

Concluiu que há 1158 anestesistas no sector público — um número que junta as regiões autónomas, porque “são todos hospitais do serviço público nacional”, e as instituições militares, “porque são igualmente unidades públicas”, explica Paulo Lemos, presidente do Colégio de Anestesiologia da Ordem dos Médicos.

O colégio enviou ainda uma versão resumida do inquérito aos hospitais privados, para apurar quantos anestesistas trabalham em exclusivo neste sector. Foram identificados 262.

“O reconhecimento de um acentuado défice é particularmente significativo nas regiões do Alentejo e Algarve (onde se agravou relativamente a 2014) e na Região Autónoma da Madeira (onde, apesar de tudo, se atenuou em relação ao Censos de 2014), mantém-se preocupante nas rRegiões do Centro e Lisboa e Vale do Tejo (onde também se agravou em relação a 2014), tendo-se no entanto reduzido na Região do Norte e na Região Autónoma dos Açores”, salienta o estudo a que o PÚBLICO teve acesso.

O défice de anestesistas indicado pelos directores de serviço mostra necessidades acentuadas em muitos hospitais, entre eles as cinco unidades mais diferenciadas do país: os centros hospitalares do Porto, São João, Lisboa Norte, Lisboa Central e Coimbra.

Também nas unidades de menor dimensão, a falta destes especialistas tem um peso enorme. Por exemplo, o Hospital do Litoral Alentejano tem nos seus quadros cinco anestesistas e precisa de mais 14. Ou seja, conclui o estudo, tem um défice de 280%.

À excepção de Évora, os restantes hospitais da região apresentam diferenças igualmente elevadas entre o número de anestesistas ao serviço e as necessidades reportadas.

Já os centros hospitalares do Médio Tejo, Algarve, hospital da Figueira da Foz e Funchal precisam de mais do dobro dos anestesistas que têm.

De acordo com o documento, existem outros 76 anestesistas a trabalhar no SNS que não estão representados na contabilidade anterior, “por estarem fora dos serviços de anestesiolologia — estão em unidades de cuidados intensivos ou da dor — e não desempenharem toda a actividade”, explica Paulo Lemos.

“Apesar de termos tudo feito para que os diferentes responsáveis pudessem explicar de que maneira é que estes défices se repercutem e têm consequências na sua actividade do dia-a-dia, a grande maioria não o fez”, prossegue o presidente do Colégio de Anestesiologia, lembrando que os hospitais podem recorrer a vários mecanismos previstos na lei quando sentem que não são capazes de dar resposta às solicitações como horas extras, prestações externas e produção adicional.

“Diria que as situações verdadeiramente urgentes estão sempre salvaguardas. O que nos pode preocupar é, de facto, percebermos se há uma lista de espera crescente ou não. Parece que o sistema vai, ainda assim, sendo capaz de muito razoavelmente dar resposta às diferentes solicitações”, afirma Paulo Lemos, salientando um indicador que considera importante: a redução de actividade em serviço de urgência. “Conseguimos programar, antecipar-nos, corrigir as situações que são passíveis de correcção cirúrgica de forma programa e planeada. Há 20 anos, o peso da urgência era muito maior.”

Para o bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, o estudo vem “mostrar quais as consequências que tem no SNS” a falta destes especialistas. “E uma são os atrasos nas listas de espera para cirurgia [para os quais] o relatório do Tribunal de Contas veio chamar a atenção. Estes profissionais são poucos e com os actuais horários, 18 horas são dedicadas às urgências. Com isso perdemos, nos últimos anos, cerca de 30% de trabalho em bloco. O Ministério da Saúde deveria olhar para esta situação com outros olhos e alterar de imediato as 18 horas de urgência”, aponta o responsável, referindo-se ao facto de até 2012 o horário contemplar 12 horas semanais de urgências, o que permitiria ter mais tempo para outras actividades programadas.

A alteração do regime de horário de trabalho é também salientada por Paulo Lemos como uma das causas para o défice destes profissionais. “É uma redução muito significativa para o contributo da actividade programada. Temos mais de 20% dos profissionais com contratos individuais de trabalho com 18 horas de urgência. Temos alertado os dirigentes que nas especialidades carenciadas, como esta, devia-se regressar ao formato das 12 horas semanais de urgência — ou menos, consoante as necessidades dos serviços.”

Existem mais causas para o défice de especialistas: a saída não compensada de anestesistas para o sector privado e para o estrangeiro, por exemplo, e o cumprimento dos descansos compensatórios pelo trabalho nocturno (que tem impacto no horário normal de trabalho, mas aumenta os níveis de segurança).

As crescentes solicitações também aumentam a necessidade que o sistema tem de anestesistas. Em mais de metade dos hospitais, os serviços de Anestesiologia dão apoio às especialidades de Gastroenterologia, Cardiologia, Pneumologia, Neurorradiologia e Radiologia. “Esta é uma área de grande diversidade e versatilidade, com intervenção nos cuidados intensivos, consulta da dor, cuidados pré e pós-operatórios, exames complementares de diagnóstico, no apoio aos partos”, reforça Paulo Lemos.

Aumentar

Medidas imediatas para resolver o problema? “A alteração do horário de urgência dos contratos individuais de trabalho”, começa por apontar o presidente do colégio. “E desmonto facilmente a argumentação de que traria mais custos, porque os hospitais pagam horas extras que são mais onerosas. Mudando, teriam mais profissionais e mais horas no imediato para as actividades programadas. E [também é preciso] abrir, mal acabem a formação, concursos para a sua colocação no SNS. E não os perdermos para o privado e para o mercado internacional, onde esta especialidade também é deficitária.”

Em 2016 houve uma revisão das regras do internato que permitiu o alargamento da capacidade formativa nacional anual para valores que rondam os 80 internos de formação específica em Anestesiologia (em vez das anterior 64 vagas). Para além disso, nos últimos três anos, mais quatro hospitais ganharam idoneidade formativa (são agora 28). Estas alterações, segundo o estudo, poderão permitir reduzir o défice de anestesistas “em cerca de dois terços, até 2023”.