“O interior pode ter tudo, até o IRC zero, mas sem água ninguém vai”
Rui Godinho, novo presidente do Conselho Directivo da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Água (APDA), que representa 75,5% do sector, critica as políticas de poupança do actual Governo e lamenta que não haja reversões das decisões da ex-ministra Assunção Cristas.
Um ano depois dos incêndios que revelaram a desertificação do interior e a crueza da seca, os portugueses, das autoridades aos consumidores, não interiorizaram o problema da falta de água, e o sector vive num farwest do improviso. "Sem uma Autoridade Nacional da Água com capacidade, competência e meios, andamos sempre atrás das medidas de poupança", afirma Rui Godinho. O especialista reconhece a necessidade de rever o Convénio de Albufeira sobre a utilização dos rios comuns com Espanha e admite o recurso à Comissão Europeia devido à política de opacidade de Madrid.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Um ano depois dos incêndios que revelaram a desertificação do interior e a crueza da seca, os portugueses, das autoridades aos consumidores, não interiorizaram o problema da falta de água, e o sector vive num farwest do improviso. "Sem uma Autoridade Nacional da Água com capacidade, competência e meios, andamos sempre atrás das medidas de poupança", afirma Rui Godinho. O especialista reconhece a necessidade de rever o Convénio de Albufeira sobre a utilização dos rios comuns com Espanha e admite o recurso à Comissão Europeia devido à política de opacidade de Madrid.
Qual o balanço da APDA sobre o programa de poupança de água do Governo? Foi só ditado pela seca de 2017, ou algo mais planeado?
Toda a gente acha bem a poupança de água, mas necessitamos da aplicação sustentada e prolongada no tempo, do Programa Nacional do Uso Eficiente da Água (PNEA). No último relatório de monitorização da seca, de 15 de Março deste ano, entre as medidas propostas, prevê-se, mais uma vez, a actualização do PNEA. Acho muito bem que o ministro, o secretário de Estado e as autoridades que tutelam a água apelem à poupança mas, por vezes, parece-me que falam de medidas avulsas, que nada resolvem. Se temos um PNEA, tem de haver uma entidade que o coordene, não só na sua aplicação e monitorização, como nos resultados.
Que entidade?
Essa entidade tem de ser oficial, que chamaria genericamente Autoridade Nacional da Água. Custa-me dizer que a Autoridade Nacional da Água, que devia ser o Instituto da Água, hoje não existe. O que existe é uma Agência Portuguesa do Ambiente (APA), onde tudo foi integrado de forma atribuliária na reforma da ministra Assunção Cristas, de 2012, da gestão dos recursos hídricos. A Autoridade Nacional da Água tem de ser um Instituto da Água, não diluído numa política geral de ambiente, como está na APA, com uma quase paralisia das administrações de região hidrográficas, que deixaram de ser organismos com capacidade de intervenção e autonomia. Sem uma Autoridade Nacional da Água com capacidade, competência e meios, andamos sempre atrás das medidas de poupança.
Supondo que o actual Governo não está de acordo, porque não alterou a situação?
É uma pergunta que também fazemos. Porque decorridos já mais de dois anos da vigência deste Governo e sabendo que não estiveram de acordo…
Como se sente nas regiões a falta desta Autoridade Nacional da Água?
De forma muito nítida. A conferência principal do Encontro Nacional de Entidades Gestoras de Água, de Évora, em Novembro de 2018, foi do presidente do Conselho Mundial da Água, Benedito Braga, sobre segurança hídrica global e água para o desenvolvimento socio-económico. As suas conclusões tinham o enfoque da gestão dos recursos hídricos nas estruturas regionais públicas de gestão por bacia ou região hidrográfica e a importância do armazenamento e regularização dos caudais no macroplaneamento dos recursos hídricos nos países do Sul da Europa, como Portugal. Coloca a gestão da água na agenda política, mas nada disto está interiorizado. Não há regiões hidrográficas a funcionar em pleno, foram desarmadas pela ministra Assunção Cristas na altura em que se estavam a consolidar. Tudo isto conduziu a uma imensa fragilização do Estado nos recursos hídricos com consequências na capacidade de intervenção das estruturas de gestão pública da água. Veja-se o que se passou em Viseu em 2017 e, mais recentemente, da poluição do Tejo, na dificuldade de fazer bem por parte do Ministério, particularmente do ministro, quando as estruturas não responderam.
Diz que não houve interiorização das dificuldades. Porque é que o Governo, que fez reversões, não as fez neste sector?
É uma pergunta a fazer ao ministro, mas que já tarda é um facto.
Mas tem uma opinião?
Tenho uma inquietação por que esta situação ainda não foi revertida. Não tenho nenhuma razão que considere plausível que impeça que essa reversão seja feita.
Transmitiu ao ministro estas inquietações?
O ministro sabe a nossa opinião desde muito cedo. Aquando do desregulamento do modelo de gestão dos recursos hídricos, a APDA foi praticamente uma das únicas entidades que criticou em sede própria, no Conselho Nacional da Água. Também houve especialistas reconhecidos que chamaram a atenção com severidade para as medidas que iam ser tomadas. Falava-se de austeridade, mas não se devia tocar em questões fundamentais.
Isso foi com o anterior Governo. E agora?
Agora ninguém diz nada. O que pura e simplesmente não entendo.
O que o Estado já terá ganho e o que perdeu por não mexer na gestão dos recursos hídricos?
Sei que o país perdeu muito. Tiveram oportunidade de verificar a atrapalhação e dificuldade dos técnicos da Inspecção Geral do Ambiente em monitorizar as descargas no Tejo, em encontrar elementos fiáveis, sejam da Celtejo ou de quem for, pelo desmantelamento das estruturas regionais das bacias hidrográficas e do INAG ter sido dissolvido na Agência Portuguesa do Ambiente. O sistema de monitorização em contínuo, da quantidade e qualidade da água, esteve desligado durante oito anos num dos principais rios portugueses.
Que confiança ter quando o Governo avança um plano de poupança, fala em medidas para tratar da seca, que está a tratar da poluição?
Prefiro a positiva, temos de criar condições para confiar, esse é o papel de uma associação como a nossa: contribuirmos para as melhores soluções, com os nossos trabalhos, propostas e comissões. Todos os meses apresentamos trabalhos: em 20 de Junho, em Lisboa, vamos fazer um seminário sobre a nova directiva-quadro da qualidade de água para consumo humano; outro, no Porto, em Setembro, da promoção dos princípios da economia circular; no final do ano faremos outro sobre a comunicação e vamos criar um grupo de trabalho de alterações climáticas que vai ordenar tudo o que tem a ver com o novo paradigma. Não podemos olhar para o que temos e o que teremos com os olhos de há 30 ou 40 anos. Não é só o Estado que tem responsabilidades, todos temos, a questão da água, repito, não está interiorizada.
Ou seja, o problema não está resolvido?
Por exemplo, em Viseu nada está resolvido, porque a barragem de Fagilde não tem capacidade para armazenamentos inter anuais, falta aumentar a sua capacidade e faltam as outras barragens do interior que deviam ter sido feitas, e não foram, para a ligação inter albufeiras. Faltam as barragens do Alvito, que a EDP foi autorizada a não fazer, no Ocreza, e a de Girabolhos, acima da Serra Estrela, estava atribuída à Endesa e que também decidiu não fazer. O país ainda não foi informado por que razão as duas eléctricas desistiram de duas barragens fundamentais para o interior, como lhes estavam atribuídas no Plano Nacional de Barragens. Só por estritas razões de interesse económico das próprias empresas?
Qual o valor dessas duas barragens na gestão dos recursos da água?
É fundamental e muito mais agravado com os incêndios e a falta de água. O presidente da Câmara de Viseu diz, e bem, que pretende a solução mais sustentável possível, inclusive para levar para lá indústrias tecnológicas. Os autarcas têm de ter essa função, mas Viseu, Nelas, Mangualde, tudo o que era servido por aquele sistema estoirou completamente. Li que, naquela zona, a maioria das pessoas dizia que o problema da água não era seu porque tinham um furo. É bom lembrar a fragilização do Estado, mas também é bom que tenhamos noção de que todos têm de participar na consciencialização de que a água é um bem escasso com tendência a tornar-se raro. De norte a sul do país, dois terços das captações subterrâneas não estão legalizadas, com grande incidência nos principais aquíferos.
Sem barragens do Alvito e de Girabolhos não haverá nunca água naquela zona?
Significa que teremos carência de água para levar gente e indústrias para o interior. O interior pode ter tudo, até o IRC zero que agora o Governo propõe, mas sem água ninguém vai. A gestão da água é seguramente um dos mais delicados problemas políticos que vamos ter em Portugal, na Península Ibérica e na Europa, nas próximas décadas.
E as questões levantadas pelos ambientalistas contra as barragens?
Tem de se encontrar um equilíbrio entre os efeitos ambientais e a sua utilidade económica. Não é simplesmente dizer que as barragens são um factor de degradação ambiental e depois não fazer nada. No último relatório da monitorização da seca, uma das medidas é avaliar as necessidades e possibilidades de construção de novas barragens de dimensão criteriosa e moderada com capacidade de regularização interanual, incentivando as disponibilidades hídricas, aumentando a resiliência em situações adversas.
Essa dimensão seria tipo ou casuística?
Depende caso a caso. O cenário mais favorável da barragem do Alvito que estava para ser feita na confluência da ribeira do Alvito com o rio Ocreza, permitia uma capacidade de armazenamento de 560 milhões de metros cúbicos. Castelo de Bode abastece 62% da área metropolitana de Lisboa. Já Girabolhos tinha uma capacidade mais pequena, de 204 milhões de metros cúbicos, nas cabeceiras do Mondego para o Dão.
Portanto, no total, quase um Castelo de Bode?
Sim, as duas barragens eram quase um Castelo de Bode. Castelo de Bode abastece 62% da área metropolitana de Lisboa. Mas há mais barragens. É muito importante sabermos bem qual a situação e que investimentos temos de fazer para melhorar os sistemas de água e saneamento, de maneira que se ganhe mais capacidade de resistir aos fenómenos adversos e reforçarmos o armazenamento interanual.
Nas grandes cidades, como Lisboa, o aproveitamento das águas está aquém do que podia ser?
As ETAR de Lisboa - Alcântara, Chelas e Beirolas - foram dimensionadas para reutilizar 20% do caudal das águas, fui eu que conduzi os processos na Câmara. Alcântara é diferente, tem capacidade para 750 mil habitantes, e uma obra para ser adjudicada para reutilizar 20%. Saí da Câmara em Junho de 2000, o concurso foi anulado, o projecto teve transformações, foi adjudicado por 30 milhões de euros, depois 64 milhões, e agora suponho que reutiliza 3% da água.
O sector da água vive num farwest de improviso?
Posta em prática a reforma de 2011 e 2012, muitas vezes pareceu ser essa a lógica. Até então, estávamos a trabalhar de forma estruturada, com uma gestão de recursos hídricos que começava a dar os seus primeiros frutos, mas quando nos estávamos a consolidar foi desmantelado. O professor Veiga da Cunha diz que andámos 30 anos para trás, e eu subscrevo.
A ERSAR diz que continuamos em média com 30% de rupturas e água não facturada.
É um problema estrutural que tem de ser resolvido de forma séria, não só pelas entidades gestoras, pelo que a ERSAR tem uma palavra a dizer na forma como trata os indicadores de desempenho no seu relatório anual. Concordo com a forma como a ERSAR organiza os indicadores de desempenho, mas acho que os deveria publicitar muito mais relativamente às situações comprometedoras. Não no sentido de apontar a espingarda a este ou aquele para além de dar bola vermelha.
Face aos furos clandestinos, aos químicos das culturas intensivas e ao impacto de zonas sem tratamento de águas residuais, que informação tem a APDA sobre o estado dos lençóis freáticos?
Temos informações que em áreas de forte exploração dos recursos subterrâneos começam a ocorrer situações que merecem ser acompanhadas. A Águas do Ribatejo, na lezíria, tem captações em que já aparecem por vezes indícios de contaminações por excesso de utilização de químicos, herbicidas, pesticidas. Também em zonas costeiras com grande intensidade de exploração, no aquífero da península de Setúbal, há preocupação sobre a deplecção dos lençóis freáticos que pode levar à intrusão salina. Aumentar a vigilância, a preocupação sobre os não legalizados e se possível encerrar muitos era fundamental, porque teremos de recorrer nas próximas décadas às águas subterrâneas. A sobreexploração dos recursos hídricos subterrâneos é um problema que tem de ser encarado.
Da água que consumimos quanto é subterrânea?
Não tenho essa repartição, mas a maioria são superficiais. Como posso ter ideia dos recursos subterrâneos se dois terços [dos furos] são clandestinos? No final do ano vamos realizar em Castelo Branco o seminário de apresentação do mercado e preços 2018 e fazer um debate sobre o valor da água. Não estritamente o valor da água do ponto de vista tarifário, mas num âmbito mais geral e fundamentalmente no interior, como factor de desenvolvimento.
De que valor fala?
Instituições como o Banco Mundial calculam que o valor económico da água no mundo é de 5618 biliões (milhão de milhão) de dólares. É o bem tangível mais valioso da terra, mais do que os metais raros, o ouro, o petróleo.
Esse valor pode justificar uma guerra pela água?
Justifica inúmeros conflitos. O mais antigo que existe na história da humanidade é o israelo-árabe, com a água do aquífero da Cisjordânia. A guerra da Síria começou depois de sete anos de seca. Não foi só por isso, obviamente, mas criou condições.