Que a dependência é uma besta
J. Cole está preocupado com os miúdos e fez um disco sobre o assunto. Droga de vida!
Desde os anos 90 que, dentro da diversificadís-sima fauna do rap americano, se convencionou designar uma certa franja de artistas como fazedores de “conscious rap”, termo conotado com um tipo de discurso introspectivo e de activismo social, sobretudo preocupado em resgatar, através de uma postura pedagógica, os miúdos das ruas — no fundo, os rappers como os pastores das igrejas do gospel que esses mesmos miúdos já não frequentam.
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Desde os anos 90 que, dentro da diversificadís-sima fauna do rap americano, se convencionou designar uma certa franja de artistas como fazedores de “conscious rap”, termo conotado com um tipo de discurso introspectivo e de activismo social, sobretudo preocupado em resgatar, através de uma postura pedagógica, os miúdos das ruas — no fundo, os rappers como os pastores das igrejas do gospel que esses mesmos miúdos já não frequentam.
Em 2018, J. Cole é, provavelmente, o mais proeminente representante dessa corrente dita “consciente” — por vezes, com uma expressão mais idealizada ou mítica do que real, claro — e, depois de 4 Your Eyez Only (4YEO), LP de 2016 a que não poupámos elogios nestas mesmas páginas, KOD é o pináculo disso mesmo.
Para lá do triplo sentido do título (Kids On Drugs; King [ele mesmo, Cole] Overdosed; Kill Our Demons), o disco, todo ele construído sobre a ideia da Adição ou Dependência enquanto entropia destrutiva, chama desde logo a atenção do ouvinte pela sua capa quase “fauvista”. As “feras” — vejam-se a simplificação das formas, as manchas largas, as cores definidoras dos planos e da perspectiva —, então, como as drogas (cocaína, tranquilizantes, anti-depressivos, mas não só: também o dinheiro, a fama, as redes sociais de Photograph) furtivamente à espreita, essas actualmente glorificadas à exaustão no trap, sub-género do rap relativamente ao qual Cole não pede licença para manifestar a sua condenação (1985 tem como destinário, entre outros, Lil Pump, um desses acéfalos trappers que exaltam Xanax como de água se tratasse, acompanhado de uma inteligentíssima linha: “These white kids love that you don’t give a fuck/‘Cause that’s exactly what’s expected when your skin black”). Se bem que o próprio Cole se aproxime, por vezes, do trap justamente para o parodiar (em KOD ou em Kevin’s Heart, canção que, a partir da sumária condenação feita na praça pública, ou seja, nas “redes”, do famoso comediante americano quando este reconheceu ter mantido relações extra-conjugais, con-funde deliberadamente a tentação nas relações amorosas e no uso de drogas), provando que, de facto, ele (trap) constitui apenas, em si mesmo, uma fórmula sónica, tudo dependendo daquilo (palavras, ideias) que se lhe junta por cima.
Se o risco do moralismo assome, por vezes, aqui e ali (e não esquecer que o rap, mesmo o tal dito “consciente”, sempre glorificou a cannabis, por exemplo), tal não chega para roubar brilho a um disco que embora não constituindo, é certo, uma novidade na obra de Cole, se mostra superiormente sólido, coeso e, não menos relevante, valioso para se compreender os confusos dias em que vivemos (e, em particular, uma grande parte da juventude americana, sobretudo tendo presente que o hip-hop é, hoje em dia, a música mais consumida entre a população jovem, com todo o potencial de idolatria e de mimetização de comportamentos que isso acarreta). Integralmente produzido pelo próprio Cole (e tende-se a esquecer o seu virtuosismo neste departamento), KOD — que, tal como 4YEO, não inclui qualquer convidado — prolonga a excelência dos arranjos (samplados e tocados) que já campeavam em 4YEO. Algo imediatamente perceptível no trompete de Intro, nas teclas de Photograph (dedos de Ron Gilmore), no baixo de Nates Jone em Once an Addict (incursão biográfica sobre a figura materna, ela própria uma ex-alcoólica e consumidora de crack) ou, ainda, nas cordas de The Cut Off (soberba voz distorcida de kiLL edward, alter-ego de Cole que se crê corresponder ao seu abusivo padrasto), talvez o mais belo momento de todo o disco, condensador, aliás, da atmosfera jazzisticamente melancólica (e vice-versa) que tem caracterizado os seus últimos trabalhos: “I know Heaven is a mind state, I’ve been a couple times / Stuck in my ways so I keep on falling down”, dessacralização curiosa vinda de um rapper cristão como Cole (mas não menos existencialista). Embora, é certo, essa atmosfera seja aqui contrariada por uma toada não raras vezes psicadélica, dissociativa, “drogada” (ou, então, muito G-funk, caso de Motiv8), aí surgindo a voz de Cole, ora rapada ora cantada (e ele é, carimbos à parte, uma das grandes vozes da soul actual), como farol de clarividência, adopte ele um registo mais sério (FRIENDS, com aquele lindíssimo Meditate num dos refrões…) ou galhofeiro (caso de ATM, acompanhada de um vídeo-paródia aos rappers Addicted-To-Money). Aliás, é curioso como, conscientemente ou não, Cole parece uma adoptar uma estrutura dual através da qual se serve dos refrões cantados e de outros momentos soltos para aplicar texto de cariz poético e abstractizante, utilizando o rap propriamente dito para a transmissão de ideias mais claras ou concretas.
Choose wisely, que se vai ouvindo de uma ponta à outra do disco, bem podia ser a frase-estandarte de um dos mais importantes músicos norte-americanos dos últimos anos, e cuja ausência do cartaz de 20 de Julho do Super Bock Super Rock — verdadeiramente histórico pelos nomes de hip-hop que concentra — é a grande, clamorosa, mácula.