O último bug
Ricos, jovens e inteligentes — os milionários da tecnologia têm muitas razões para querer que o tempo não passe por eles. E estão a gastar fortunas para tentar resolver o problema.
Em 2004, os dois fundadores do Google decidiram comprar um Boeing 767 usado. O avião tinha capacidade para cerca de duas centenas de pessoas e o objectivo era transformá-lo numa espécie de casa de luxo voadora, com quartos e salas de refeição. Larry Page e Sergey Brin contrataram uma empresa para fazer a remodelação. Queriam redes de baloiço penduradas do tecto (o que não era possível por razões de segurança) e, a dada altura, tiveram uma discussão sobre o tipo de cama a pôr nos quartos do avião. Brin queria uma cama Califórnia king size, que é um tamanho especialmente grande. Eric Schmidt, um executivo mais velho que fora contratado poucos anos antes para dirigir o Google, teve de intervir e dizer que cada um podia ter a cama que quisesse no respectivo quarto.
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Em 2004, os dois fundadores do Google decidiram comprar um Boeing 767 usado. O avião tinha capacidade para cerca de duas centenas de pessoas e o objectivo era transformá-lo numa espécie de casa de luxo voadora, com quartos e salas de refeição. Larry Page e Sergey Brin contrataram uma empresa para fazer a remodelação. Queriam redes de baloiço penduradas do tecto (o que não era possível por razões de segurança) e, a dada altura, tiveram uma discussão sobre o tipo de cama a pôr nos quartos do avião. Brin queria uma cama Califórnia king size, que é um tamanho especialmente grande. Eric Schmidt, um executivo mais velho que fora contratado poucos anos antes para dirigir o Google, teve de intervir e dizer que cada um podia ter a cama que quisesse no respectivo quarto.
Os detalhes do episódio são conhecidos porque os planos de remodelação do avião acabaram num processo em tribunal, depois de a empresa encarregada do serviço não os conseguir concretizar. Então, Page e Brin eram jovens e muito ricos: tinham 31 anos e o Google acabara de entrar na bolsa, dando-lhes o tipo de fortuna que lhes permitia fazer praticamente quase tudo, de birras sobre a dimensão de camas em aviões privados a projectos ambiciosos para tentar transformar nada menos do que alguns aspectos fundamentais da condição humana.
Os anos passaram e, que se saiba, os dois fundadores do Google não tiveram mais discussões sobre o assunto. Em 2011, Eric Schmidt abandonou o cargo de CEO com uma frase célebre na história recente da tecnologia: “Já não é preciso supervisão adulta no dia-a-dia.” Page e Brin eram agora gestores experientes (e grisalhos), capazes de liderar a empresa que eles próprios tinham criado na faculdade. Também se tinham casado e tinham tido filhos. E, como muitas vezes acontece, independentemente do tamanho da conta bancária, começaram a surgir as preocupações associadas ao avançar da idade — embora não exactamente o tipo de preocupações que assaltam as pessoas que contam ao espelho rugas e cabelos brancos. Desta feita, a preocupação foi uma variante de Silicon Valley, que misturou ciência, empreendedorismo, os privilégios de se ser multimilionário e uma convicção de que não há muitas coisas (talvez mesmo nada) que a tecnologia não possa resolver.
Como resolver a morte
Sergey Brin descobriu, através de uma análise genética, que tem uma propensão elevada para vir a ter a doença de Parkinson, uma doença neurológica que afecta os movimentos e a capacidade de falar. A ex-mulher é a fundadora da 23andMe, uma empresa que quer massificar os testes de ADN, e face à possibilidade de adoecer, Brin — que nos tempos da Universidade de Stanford tinha fama de génio matemático, apesar de dedicar mais tempo a praticar desporto do que a ir às aulas — fez aquilo que se espera de um fundador do Google: estudou o assunto, financiou um estudo da 23andMe com dez mil pessoas, tentou perceber o que pode estar associado ao aparecimento de Parkinson e agiu com base nessa informação. Passou a beber café e chá verde (há indicações de que a cafeína ajuda a prevenir a doença) e fez questão de não descurar o exercício (entre os desportos que já praticou estão os saltos para a água, modalidade na qual chegou a competir). Ainda assim, o conhecimento sobre a doença não é completo e preveni-la está muito longe de ser uma ciência exacta. Uma busca no Google da expressão “prevenir Parkinson” mostra notícias e estudos a aconselhar todo o tipo de comportamentos: beber mais café, adoptar uma dieta mediterrânica, evitar lacticínios, jogar videojogos. A ciência (e muito menos o Google) não tem resposta para isto, como admitiu o próprio Brin uma vez, em declarações à revista Wired: “Isto é tudo de improviso, mas digamos que, com base na dieta, no exercício e noutras coisas, consigo reduzir o meu risco em metade, para cerca de 25%.” É uma conclusão muito exacta para um improviso, mas as mentes, e as empresas, de Silicon Valley são conhecidas precisamente por analisar e quantificar todo o tipo de dados.
Em 2013 (ano em que os dois fundadores do Google fizeram 40 anos), a revista Time pôs uma pergunta na capa: “Pode o Google resolver a morte?” Aquela edição trazia um longo texto sobre o lançamento da Calico, que era então a mais recente empresa do império Google. Este novo projecto — sobre a qual ainda hoje não se sabe muito — ia dedicar-se à investigação na área da saúde e do envelhecimento. “A doença e o envelhecimento afectam todas as nossas famílias. A longo prazo, com a aposta na saúde e na biotecnologia, acredito que poderemos melhorar milhões de vidas”, afirmou na altura Larry Page.
A criação da Calico — cujo nome é uma abreviação de California Life Company — foi uma surpresa. Naquela altura, o Google já se tinha aventurado para lá da Internet, em áreas como a inteligência artificial e os carros autónomos. Porém, desta vez tratava-se de uma empresa que tinha mais que ver com médicos e biólogos do que com engenheiros e programadores informáticos. E era, assumidamente, uma aposta a longo prazo. Em declarações à Time, Page explicou: “Em alguns sectores, demora 10 ou 20 anos a ir de uma ideia para algo real. A saúde é seguramente uma dessas áreas. Talvez devêssemos apontar para coisas que são muito, muito importantes, para que, dentro de 10 ou 20 anos, tenhamos essas coisas feitas.” Dez ou 20 anos pode ser muito tempo para o investimento de uma empresa dar frutos, mas é um prazo perfeitamente aceitável para um gigante como o Google, que não tem preocupações de liquidez. Além disso, 10 ou 20 anos significa que Page e Brin poderão beneficiar dos avanços feitos pelos investigadores da Calico bem antes de chegarem à idade da reforma.
Fé na tecnologia
Os magnatas da tecnologia — muitos dos quais se tornam milionários antes de chegarem aos 30 anos — têm tendência para aplicarem parte das suas enormes fortunas para tentar resolver problemas relacionados com doenças e com o envelhecimento. Mas as situações são muito diferentes. Por exemplo, Bill Gates tem gasto tempo e milhões para erradicar a malária e melhorar as condições sanitárias em países em desenvolvimento. Sean Parker, um dos criadores do Napster (um programa de partilha de ficheiros popular no início do século) e um dos primeiros investidores no Facebook, aplicou 600 milhões de dólares numa fundação para promover avanços na medicina, e criou também o Instituto Parker para a luta contra o cancro. Além de abrir os cordões à bolsa, Parker tem-se dedicado a estudar a doença, é entusiasta de uma técnica chamada imunoterapia, faz lobby junto de políticos e participa frequentemente em acontecimentos públicos sobre o assunto. Já este ano, a Y Combinator, uma afamada aceleradora de startups de Silicon Valley, disponibilizou investimento para empresas que se dediquem a aumentar o “prazo de saúde” (o tempo durante o qual as pessoas se mantêm saudáveis) e a tentar curar doenças relacionadas com o envelhecimento. Ou, na descrição do site de tecnologia Gizmodo, este é mais um exemplo de como “Silicon Valley está pronto para gastar mais milhões na sua obsessão antienvelhecimento”. E, no final deste espectro de preocupações com a saúde, há os tecnoentusiastas de grandes contas bancárias para quem as doenças e o envelhecimento são problemas a resolver de forma a concretizar um plano muito sucinto: não morrer.
Como habitual nestes assuntos, esta é uma questão de fé. Neste caso, a fé é “a crença de que todos os problemas têm soluções tecnológicas”, apontou o académico John Naughton, da Universidade de Cambridge e autor do livro From Gutenberg to Zuckerberg: What You Really Need to Know about the Internet (“De Gutenberg a Zuckerberg: o que precisa mesmo de saber sobre a Internet”). Num artigo para o Observer, Naughton classificou a Calico como “o típico produto do campo de distorção da realidade que é Silicon Valley” (a expressão “campo de distorção” é mais frequentemente usada para referir a capacidade de Steve Jobs para convencer quem o rodeava de que uma determinada ideia era verdadeira por muito que todos os factos indicassem o contrário). “O grupo de Silicon Valley quer outra coisa: eles estão a tentar tornar a morte opcional”, continuou Naughton. “E acham que pode ser feito. Afinal, como disse um engraçadinho há umas décadas: ‘A morte é a forma de a natureza dizer que fomos despedidos.’ Quando já procriámos e criámos alguns filhos, a evolução considera-nos dispensáveis, para lá do nosso prazo de validade. Por isso, fez com que algures no nosso ADN haja genes que progressivamente activam o processo de envelhecimento, acabando por levar a que os nossos corpos entrem em falência. Para as pessoas dos computadores, o ADN é apenas código, e o código pode sempre ser modificado.”
Um dos casos conhecidos desta fé na tecnologia é o do inventor Ray Kurzweil. Aos 70 anos, Kurzweil é um funcionário de topo do Google, onde trabalha na área da inteligência artificial. Antes, desenvolveu tecnologias que permitiram o reconhecimento de texto digitalizado por parte de computadores e a leitura de texto por máquinas. Na década de 1980 lançou um sintetizador de música que pela primeira vez permitia que uma máquina produzisse os sons de instrumentos de orquestra (algo que anos mais tarde lhe valeu um Grammy). As sucessivas empresas que criou para comercializar as suas invenções tornaram-no um homem rico.
Mais recentemente, Kurzweil tem-se notabilizado por querer adiar o envelhecimento com base numa lógica simples: deverá ser possível adiar o envelhecimento tempo suficiente para conseguir encontrar novas formas de o continuar a adiar, num prolongamento talvez sem fim do tempo de vida, assente no ritmo exponencial a que a tecnologia e o progresso científico estão a evoluir. No seu livro Transcend: Nine Steps to Living Well Forever (“Transcender: nove passos para viver bem para sempre”), publicado em 2010 em co-autoria com um médico, argumenta que as tecnologias da medicina são hoje tecnologias de informação. A analogia entre os genes humanos e os programas de computador é uma das bases do livro: “Considere o quão frequentemente actualiza o software dos seus computadores. Mas o software dos nossos corpos — o código genético — não é actualizado há milénios”, lê-se numa das páginas que antecedem a explicação do grande objectivo da obra: “Envelhecer não é um processo único. Consiste em mais ou menos uma dezena de processos, cada um dos quais leva, ao longo do tempo, à perda das nossas capacidades físicas, sensoriais e mentais. Vamos mostrar como abrandar significativamente estes processos e, em muitos casos, como os parar ou mesmo os reverter. Desta forma, pode-se ficar jovem até termos ainda mais conhecimento para ficarmos ainda mais jovens.” Em termos práticos, o livro dá o tipo de conselhos que se encontram em muitos sites de saúde: técnicas de relaxamento, conselhos alimentares, exercícios, perda de peso, suplementos e vitaminas. O próprio Kurzweil já chegou a tomar cerca de 250 comprimidos por dia.
“A melhor invenção”
Steve Jobs tinha 48 anos quando lhe diagnosticaram um cancro pancreático. Depois de o médico lhe ter dito para “pôr os assuntos em ordem”, recebeu, no entanto, uma boa notícia: afinal, o cancro era de um tipo raro, que podia ser curado se o tumor fosse detectado a tempo (como era o caso) e removido. Jobs recusou. Passou nove meses a tentar curar-se com sumos de frutas, dietas vegetarianas e outros “remédios” que encontrava na Internet. Até que, em Julho de 2004, acabou por se submeter à cirurgia. Viria a morrer sete anos mais tarde, aos 56 anos, após múltiplas complicações relacionadas com a doença.
Steve Jobs não teve a mesma confiança na ciência que muitos dos seus correligionários de Silicon Valley. Mas, pelo menos enquanto novo, também não parecia ver grandes benefícios em envelhecer. A revista Playboy fez-lhe uma longa entrevista por ocasião do seu trigésimo aniversário: “As nossas mentes são uma espécie de computador electroquímico. Os pensamentos formam padrões, como andaimes na mente. Estamos a traçar padrões químicos. Na maioria dos casos, as pessoas ficam presas a estes padrões”, observou Jobs na altura. “É raro ver um artista nos trintas ou quarentas que seja capaz de contribuir com algo fantástico.”
Duas décadas mais tarde, Jobs fez declarações que ficaram muito mais famosas do que aquela entrevista para a Playboy. Frente a uma plateia de estudantes da Universidade de Stanford, disse: “A morte é muito provavelmente a melhor invenção da vida. Lembrar-me de que todos estaremos mortos em breve é a ferramenta mais importante que encontrei para me ajudar a fazer as grandes escolhas na vida.”
Pelo menos para uma das grandes lendas de Silicon Valley, a morte não é um bug no código da humanidade à espera de ser corrigido. É mais uma funcionalidade da vida.