As marinhas estão a ganhar nova vida e o sal não é o seu único tempero
Degustar ostras e salicórnia em pleno coração da ria, fazer uma massagem com lamas ou simplesmente mergulhar o corpo na água salgada. São várias as propostas a cumprir nas “novas” marinhas de Aveiro.
Numa tarde, Mónica Martinez chega a abrir e a preparar umas “300 ostras” e nem assim fica enjoada deste bivalve. “Até gosto de comer uma ou outra pelo meio”, confessa. “Isto não é complicado. Só é preciso saber a técnica para as abrir e usar luvas para não magoar as mãos”, acrescenta, ao mesmo tempo que se mantém focada na tarefa. O momento não é propício a distracções. Os visitantes não param de chegar e vêm com expectativas elevadas: degustar “as melhores ostras a nível nacional” — Mónica assegura que a classificação é feita por quem as prova —, apanhar e provar salicórnia e assistir ao pôr do sol a partir das águas da ria de Aveiro. O convite lançado pela gerência da Ostraveiro parece ter agradado a muitas pessoas e a marinha Passagem acabou por ser palco de uma grande festa com cheiro a Verão.
O espaço que durante décadas esteve dedicado à produção de sal está, agora, transformado em atractivo turístico, aliado à produção (e degustação) de ostras e salicórnia. Um pequeno recanto da ria, situado bem próximo do centro de Aveiro, onde cabe quase tudo aquilo que é necessário para um dia de lazer: uma zona com camas de rede, áreas de esplanada, um parque infantil e um bar de madeira literalmente plantado em cima da água. “É um bar que serve apenas gin”, explica Sandro Sousa, o empresário que, juntamente com a mulher, Sandra Sousa, decidiu recuperar uma antiga marinha de sal e dar-lhe uma nova vida, associando-a à actividade que já vinham desenvolvendo na Ostraveiro (produção de ostras).
Abriram no final do Verão do ano passado, apenas em “fase de testes”, e, no passado mês de Fevereiro, o projecto começou a entrar em velocidade cruzeiro (a marinha está aberta todos os dias). “As pessoas gostam muito de vir cá e de consumir aquilo que produzimos aqui”, refere Sandro Sousa — além das ostras, a carta da casa contempla ainda berbigão, amêijoas e lingueirão (só este último não é produzido na marinha Passagem). Ainda que não seja obrigatória a reserva prévia, a gerência aconselha a marcação de mesa, tanto mais porque o acesso à marinha é feito através de barco. Uma curta travessia de dois minutos — apenas para atravessar o canal da antiga lota —, orientada por marinheiros experientes, como é o caso de António Piorro, que passou mais de 20 anos no mar e que parece conseguir fazer esta pequena navegação com uma perninha às costas.
Na verdade, os visitantes quase nem chegam a sair do centro de Aveiro, ainda que sejam tentados a pensar que estão “num pequeno paraíso”. “Sem dúvida um sítio para trazermos pessoas que venham de fora”, avaliam Sandra Martins e Andreia Rosas, duas amigas, ambas de Aveiro, que decidiram participar no sunset do passado dia 26. “Queríamos conhecer o espaço e aproveitámos o evento”, introduz Sandra Martins. E a primeira avaliação não deixava margem para dúvidas. “Isto é fantástico e mantém viva essa tradição das marinhas em Aveiro”, nota, por seu turno, Andreia Rosas, fazendo votos para que outras antigas salinas possam ter um destino idêntico.
Uma ajudinha vinda da Figueira da Foz
O convite falava apenas na degustação de ostras e na apanha de salicórnia mas os anfitriões da festa, Sandro e Sandra, fizeram questão de brindar os convidados com um showcooking de petiscos à base dessa planta salgada. Para isso, chamaram a presidente da Associação Figueira Com Sabor a Mar, Isabel João, que ensinou a confeccionar pataniscas de salicórnia e peixinhos da horta (com salicórnia). “Para as pataniscas, usamos farinha, água, cebola, ovos, salicórnia e um dedal de cerveja; já os peixinhos da horta levam farinha, água ou leite, ovo e salicórnia, neste caso com os troços maiores”, explica a também proprietária do Restaurante Picadeiro, da Figueira da Foz.
Com Isabel João veio também uma pequena comitiva figueirense, cidade que também conta com grandes tradições na produção de sal e que “está a trabalhar para manter bem viva a tradição do salgado”, afiança Miguel Pereira, vereador da câmara da Figueira da Foz. E tanto lá como em Aveiro o grande impulso para a requalificação das antigas salinas tem vindo a ser dado pelo sector do turismo.
Uma nova vida, com ou sem sal
Em Aveiro, os últimos dois anos têm sido marcados por alguns sinais positivos no que concerne às marinhas de sal — já agora, evite, por estas bandas, chamar-lhes salinas (dizem que é uma afronta e que os antigos marnotos jamais a perdoariam). As antigas áreas de produção de sal estão a revitalizar-se, contrariando o triste cenário que a cidade da ria vinha enfrentando nas últimas décadas: os montes brancos deixaram de ser uma constante na paisagem (das cerca de 270 marinhas que se mantinham activas nas décadas de 60 e 70 do século passado, restavam menos de uma dezena). Com o aumento da afluência de turistas à cidade, não tardou a que alguns empresários percebessem a oportunidade que jazia — o termo pode parecer exagerado, mas a verdade é que muitas marinhas estavam completamente largadas ao abandono e degradadas — ali ao lado, às portas da malha urbana.
E ainda que a grande maioria mantenha essa função básica de produção de sal, nestas marinhas revigoradas criaram-se propostas de actividades e experiências que não se esgotam na observação dos afazeres dos marnotos. Disso é exemplo o Spa Salínico, inaugurado em Agosto de 2016, nas marinhas Grã Caravela e Peijota. O espaço, gerido pela empresa turística Cale do Oiro, não tardou a conquistar uma grande legião de fãs, atraídos pela possibilidade mergulhar na água da salina — à qual a empresa faz questão de acrescentar uns bons punhados de sal —, de beber um copo ao pôr do sol ou fazer uma massagem de relaxamento ou tratamento de beleza.
São várias as opções disponíveis neste spa a céu aberto (serviços sujeitos a marcação prévia) e que vêm complementar o tratamento que já é garantido através de um banho na água da marinha: massagem simples de relaxamento com água de salmoura, massagem de pedras quentes com água salgada, ou o tratamento de assinatura, o Ritual Salinas. “Consiste numa esfoliação com flor de sal e óleo de coco, seguida de hidratação profunda da pele. Esta massagem prevê não só o relaxamento mas também a eliminação de toxinas e por arrasto drenagem de celulite”, assegura a técnica de spa Teresa Estêvão. Depois de ter vivido e trabalhado na Islândia, bastou-lhe adaptar os conhecimentos e experiência aí adquiridos para a realidade do salinário aveirense. E jura a pés juntos que o sal “é um mineral riquíssimo, que funciona como diurético, antipirético, cicatrizante, regenerador da elasticidade da pele, entre muitos outros benefícios”. Se ainda assim subsistirem dúvidas, a empresa detentora do spa salínico está disposta a mostrar os “resultados de análises feitas à água e às lamas, que comprovam as suas propriedades terapêuticas”, assegura Fernando Catarino, um dos proprietários da Cale do Oiro.
Este vai ser já o terceiro ano de funcionamento do spa salínico — o espaço só agora está a dar início à temporada de 2018 —, mas as perspectivas continuam a ser bastante positivas. Tanto mais que a empresa está prestes a lançar no mercado novos produtos de cosmética made in Grã Caravela e Peijota — uma lama, um creme hidratante, uma água micelar e um bronzeador natural, que se juntarão aos sabonetes e sais já existentes. “E aguardamos pela aprovação de um projecto de requalificação dos palheiros, que vão tornar o espaço ainda mais atractivo e moderno”, acrescenta Fernando Catarino, antevendo que essa renovação já não possa ser feita a tempo deste Verão. Por ora, mantêm-se os ingredientes dos anos anteriores: visitas guiadas, uma loja com produtos à base de sal e uma esplanada com bar, além do spa.
Dos Puxadoiros à Troncalhada
A história do aproveitamento das salinas aveirenses para o turismo terá começado há nove anos, na ilha dos Puxadoiros, quando um grupo de investidores se juntou para comprar e recuperar aquela marinha. “No início, era um projecto aquícola mas foi fácil perceber que havia ali uma beleza natural num estado puro”, recorda Vergílio Rocha, um dos proprietários do espaço. Reconhecido o potencial turístico, a aposta passou por conciliar a vertente da aquicultura e da produção de sal, com o turismo de natureza, dando a conhecer o ecossistema que é a ria de Aveiro — com especial destaque para as aves ali existentes (flamingos, pernas-longas, borrelhos, andorinhas do mar, gaivotas e garças). Sempre com esta certeza: “Este não é um sítio para turismo de massas”, realça Vergílio Rocha, lembrando que, por estar numa ilha, esta marinha — que integra um conjunto de oito — apenas é acessível através de barco.
Actualmente, a exploração turística da marinha dos Puxadoiros está entregue à empresa Aveiro Emotions — que actua, também, na área dos passeios de moliceiro, restauração, entre outras —, mas a aposta num produto diferenciado continua a ser a tónica dominante. “São visitas guiadas, com a degustação de alguns produtos, e com uma viagem de barco de cerca de 30 minutos para cada lado”, destaca Virgílio Porto, da Aveiro Emotions, reconhecendo que esta distância encarece um pouco o produto (20 euros por pessoa) mas também traz inúmeras vantagens. Também por iniciativa da Aveiro Emotions está a ser lançado o Aquaria, um local para a prática de SUP (stand up paddle), nascido, precisamente, uma antiga marinha — o empreendimento está a operar na área de team building.
Justiça seja feita, também, à câmara municipal de Aveiro, que ainda na década de 90 do século passado decidiu adquirir uma marinha e transformá-la em ecomuseu. Na Troncalhada, dão-se a conhecer os métodos de produção artesanal do sal e mantêm-se vivas as tradições ligadas a esta actividade secular. Na prática, este núcleo museológico é uma marinha em actividade, mas aberta ao público — com a possibilidade de agendar visitas guiadas. Uma característica que é comum a todos os projectos de revitalização das antigas salinas de Aveiro, como comprova a “novíssima” marinha Noeirinha — mais um espaço que acaba de ser colocado ao serviço de turismo e que acaba de ser inaugurado (ver texto nestas páginas).
Começa, assim, a garantir-se o regresso dessa paisagem recortada em mosaicos e decorada com montes brancos. E também se dá início a uma campanha de marketing em torno do salgado aveirense sem precedentes: há cada vez mais turistas a provar o sal, flor de sal ou a salicórnia produzida nas marinhas do município; as prateleiras das lojas da região vão-se enchendo de cosméticos e temperos feitos a partir do cristal saído das salinas. Com um dado adicional: está em curso um programa da Associação Comercial de Aveiro que visa estimular e apoiar projectos empresariais em torno das marinhas – chama-se Sal de Aveiro e já tem disponível uma bolsa de arrendamento de salinas. Fica apenas a faltar um investimento nas vias de acesso a estas infra-estruturas agora colocadas ao serviço do turismo — as estradas que servem a grande maioria das marinhas aveirenses estão em péssimo estado.