DiDonato em dose dupla

Projecto conceptual, sobre a paz e a harmonia, de uma das máximas cantoras da actualidade. Em CD e num dvd, que se impõe claramente, registo de um concerto no Liceo de Barcelona.

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DiDonato sentiu o projecto ainda mais convictamente pelo facto da digressão se ter iniciado semanas após a eleição de Trump NICK HUNT /PATRICK MCMULLAN VIA GETTY IMAGES

A meio-soprano norte-americana Joyce DiDonato é uma eminente belcantista, uma das máximas cantoras da actualidade. Sem descurar o reportório de inspiração popular ou mesmo o “musical” (o que, diga-se, é congénito a quase todos os cantores americanos), por um lado, ou certas óperas contemporâneas também americanas, impôs-se sobretudo no reportório barroco, Haendel em particular, que depois estenderia a Rossini. Dois discos dedicados a Haendel, Amore e gelosia, em duetos com Patricia Ciofi, e depois Furore, a solo, impuseram-na. A partir daí, e tal o estatuto entretanto alcançado, DiDonato foi uma das intérpretes que, na senda do trilho aberto por Cecilia Bartoli (sem considerar agora, mas também sem esquecer, as precursoras que foram nos anos 60 as grandes Joan Sutherland e Marilyn Horne, com os maestros, musicólogos e maridos, respectivamente Richard Bonynge e Henri Lewis) teve condições para negociar com a editora, a Virgin Classics e depois a ressuscitada Erato, sucedânea da outra, álbuns programáticos ou conceptuais, musicologicamente cuidados. Assim se sucederam, Colbran, the muse, com árias de Rossini escritas para a sua prima donna e mulher, Isabella Colbran, e sobretudo, absolutamente esplêndidos, Divo/Diva, com árias para papéis femininos e travestidos, num espectro de Mozart a Strauss, passando por Bellini ou Massenet, e Stelli di Napoli.

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A meio-soprano norte-americana Joyce DiDonato é uma eminente belcantista, uma das máximas cantoras da actualidade. Sem descurar o reportório de inspiração popular ou mesmo o “musical” (o que, diga-se, é congénito a quase todos os cantores americanos), por um lado, ou certas óperas contemporâneas também americanas, impôs-se sobretudo no reportório barroco, Haendel em particular, que depois estenderia a Rossini. Dois discos dedicados a Haendel, Amore e gelosia, em duetos com Patricia Ciofi, e depois Furore, a solo, impuseram-na. A partir daí, e tal o estatuto entretanto alcançado, DiDonato foi uma das intérpretes que, na senda do trilho aberto por Cecilia Bartoli (sem considerar agora, mas também sem esquecer, as precursoras que foram nos anos 60 as grandes Joan Sutherland e Marilyn Horne, com os maestros, musicólogos e maridos, respectivamente Richard Bonynge e Henri Lewis) teve condições para negociar com a editora, a Virgin Classics e depois a ressuscitada Erato, sucedânea da outra, álbuns programáticos ou conceptuais, musicologicamente cuidados. Assim se sucederam, Colbran, the muse, com árias de Rossini escritas para a sua prima donna e mulher, Isabella Colbran, e sobretudo, absolutamente esplêndidos, Divo/Diva, com árias para papéis femininos e travestidos, num espectro de Mozart a Strauss, passando por Bellini ou Massenet, e Stelli di Napoli.

O seu regresso ao barroco, com Drama Queens, foi aclamado mas afigurou-se-me problemático em vários aspectos. Se o repertório era interessantíssimo, com “descobertas” de compositores tão ignotos como Orlandini, Giacomelli ou Porta, ou insuficientemente conhecidos como Cesti, Keyser ou Hasse, era patente também um excesso de pose, logo visível na capa do disco, com um garrido vestido de uma estilista de renome, Vivienne Westwood, que não era apenas um figurino mas uma parte integrante do projecto, com que ela se apresentava em todos os concertos, como constatámos na Gulbenkian em 2011. Claro que a pose é inerente ao canto lírico, e tanto mais barroco (a toda a estética barroca, aliás), mas, apesar da arte consumada da ornamentação, e da plasticidade da voz, não se evitava uma certa monotonia no excesso — pessoalmente achei mesmo o concerto algo enfadonho.

Com tal precedente não é sem algum receio que se recebe In War & Peace, de novo com um espampanante vestido de Vivienne Westwood, e para mais com uma exuberante maquilhagem que cria como que uma máscara em torno dos olhos, no pescoço e na parte superior do peito, e umas notas no livrete que serão muito “bem intencionadas” mas de uma inocuidade quase total.

Mas vamos à música, que é o importante. DiDonato retorna a Haendel, nem sempre com as escolhas mais felizes, e integra no seu repertório Purcell, para o qual não tem a limpidez de voz. Talvez pela frequência entretanto de papéis de soprano, como a Elena de La Donna del Lago de Rossini (que vimos na Gulbenkian em transmissão do Met) ou o papel titular da Maria Stuarda de Donizetti (cujo DVD ainda teve distribuição nacional), há algumas dificuldades em mudanças de registo. Para além do mais, o que é grave num álbum conceptual, não se compreende porque algumas árias são de War e outras de Peace: a que propósito, para citar o exemplo mais gritante, o maravilhoso lamento de Dido de Dido e Eneias de Purcell é uma ária de War? Para mais se no recitativo e no início da ária há uma bela linha vocal, o repetido mote de despedida, Remember me, é de uma notória ausência de dor, totalmente pálido, como pálidas, e insuficientes na caracterização dos afetti são a generalidade das árias de Purcell e mesmo algumas de Haendel.

Suplementarmente um agrupamento tão justamente reputado como Il Pomo d’Oro mostra-se bem menos empenhado que o habitual, apesar de algumas belas contribuições solistas do violino, do oboé, da flauta ou da teorba.

Sucede, contudo, que também há grandes momentos.

Depois da surpresa que foi o grande lamento de Ottavia, Disprezzata regina de L’Incoronazione di Poppea em Drama Queens, já não espanta que DiDonato aborde Monteverdi, compositor que se suporia alheio às características do seu canto, e desta feita é o Illustratevi o cielo de Penélope em Il Ritorno d’Ulisse que se admira. Mas os momentos culminantes, são três árias inéditas em disco, uma de Leo, duas de Jomelli — dois importantes compositores operáticos do barroco tardio — e, a encerrar o Da tempesta de Cleopatra do Giulio Cesare de Haendel — são quatro árias superlativamente interpretadas, arrebatadoras.

Surpreendentemente a Warner, uma das várias editoras que deixaram de distribuir DVD, ou mesmo CD com suplemento de dvd (por isso a referida La Donna del Lago nunca chegou ao mercado português), desde que a IGAC, Inspeção Geral das Actividades Culturais, passou a aplicar uma maior taxa (apesar de já ter posto a pergunta continuo sem saber que raio tem o Ministério da Cultura contra os DVD de música), lançou entretanto In War & Peace nesse formato, em concerto gravado no Liceo de Barcelona em Junho do ano passado. A razão é uma: a apresentação de DiDonato na semana passada na Gulbenkian com este mesmo programa.

Começa-se a ver e teme-se o pior: a cantora já está em palco, com o espampanante vestido e a extravagante maquilhagem, e mais, há projecções vídeo, luminotecnia e, vá lá saber-se porquê, até um bailarino. Mas depois há a surpresa e não é pequena: o concerto tem uma intensidade que não se adivinha no disco.

O programa é mais reduzido, não há a ária de Monteverdi, e das de Jomelli há apenas uma, apresentada como extra. Mantém-se o absurdo do Lamento de Dido, mas felizmente há muito menos árias de Purcell. O famoso Lascia ch’io pianga do Rinaldo de Haendel, tão decepcionante no cd, é muito mais intenso, e, da mesma ópera, o igualmente célebre Angellleti, che cantate é um belíssimo diálogo com a flauta de bisel. E Il Pomo d’oro está muito mais empenhado, havendo algumas páginas puramente orquestrais, num espectro que vai do maneirismo à contemporaneidade, de Cavalieri a Arvo Part (sim, Part em instrumentos barrocos!).

O final “oficial” do programa é a apoteótica ária de Cleópatra, mas depois de um discurso da cantora há, magistralmente, uma das árias de Jommelli, Par che di giubilo de Attilio Regalo e, surpresa total, e maravilhosa, de modo inédito, com um violino solo e cordas, um dos mais belos lieder de Strauss, Morgen — como isto mesmo se repetiu na Gulbenkian é óbvio que os extra estão previstos no programa.

Depois há os outros extras, isto é os do DVD. Em vez do brique-à-braque de “boas intenções” das notas do livrete do CD, Joyce DiDonato explica claramente, mais explicitando as suas palavras em palco, que este projecto nasceu da necessidade que sentiu de fazer algo sobre paz e harmonia depois dos atentados de Novembro de 2015 em Paris. Mais: sem nunca citar o nome torna claro que sentiu o projecto ainda mais convictamente pelo facto da digressão se ter iniciado duas semanas depois da eleição de Trump.

E para as questões prementes da actualidade a que ela se quer referir não ficarem apenas no abstracto há ainda mais duas reportagens feitas na Grécia, no El Sistema desse país, uma com crianças afegãs e sírias num campo de refugiados, outro com um concerto dessa orquestra juvenil no anfiteatro no sopé da Acrópole.

É raro os dvds de concertos acrescentarem alguma coisa. Neste caso, e apesar dos receios de toda aquela panafernália cénica, da falta da ária de Penélope e da outra do mesmo Attilio Regola de Jommelli, Sprezza il furore del vento, o dvd impõe-se claramente.