O mundo que avança nos impossíveis de uma criança

Precisamos de achar de novo inimaginável um menino ir à guerra, uma escola não ter cadeiras, uma casa não ter tecto. De dizer “isso não me parece possível” com a autoridade da infância

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Copiei-o para o caderno mais à mão, a salvar do possível esquecimento uma ideia que queria permanente na minha memória. Estava num livro sobre a arte de contar histórias, linhas habitadas de fantasia onde se apresenta um mundo ao contrário como fórmula para pôr o mundo a andar às direitas. Dizia assim:

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Copiei-o para o caderno mais à mão, a salvar do possível esquecimento uma ideia que queria permanente na minha memória. Estava num livro sobre a arte de contar histórias, linhas habitadas de fantasia onde se apresenta um mundo ao contrário como fórmula para pôr o mundo a andar às direitas. Dizia assim:

“(...) É importante que a criança vá munida de optimismo e confiança para os desafios da vida. E convém também não descurarmos o valor educativo da utopia. Se, apesar de tudo isto, não esperássemos um mundo melhor, quem nos convenceria a ir ao dentista?”

Lembrei-me desse parágrafo a propósito das fotografias de crianças do Manuel Roberto. Ou antes: a propósito dos comentários dos meus sobrinhos Leonor e Manel às fotografias do Manuel Roberto.

Tinha percorrido as imagens demasiadas vezes, em busca de palavras merecedoras de as acompanhar. Via nelas um manifesto. Um tratado sobre o que é e devia ser a infância. Uma imensa beleza enovelada numa tristeza incómoda. Igualdade e o seu contrário. Mas não encontrava as palavras certas. Não queria escrever que as crianças são o melhor do mundo, que o Dia da Criança não é o primeiro de Junho, mas todos os dias de todos os meses de todos os anos. Isso já nós sabemos.

Lembrei-me, então, de pedir ajuda à Leonor e ao Manel, cinco e três anos, quase seis e quase quatro. E o que eles viram é também um manifesto.

Um menino com um “chapéu de tropa” há-de estar no meio de uma brincadeira. Ou então foi “há muito muito tempo, quando os meninos iam à luta”. Uma família junto a uma tenda está certamente a “fazer campismo” e se há camas num descampado é porque “levaram as camas para o campismo”. Ou isso ou foi também há muito tempo, naquele em que “essas coisas aconteciam”. E se ocorre um menino ter um dos olhos e o nariz com mazelas isso só pode ser “um erro da fotografia”. Argumentaram sem hesitações até àquela fotografia da escola, tão diferente da deles.

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A Leonor olhou-me, talvez em busca de uma explicação para aquele cenário inexplicável.

— O que achas que é?
— Era uma escola. Agora já não existem escolas assim.

E eu sem querer dizer-lhe o contrário. Sem querer contar-lhe esta história sem fantasia onde meninos como ela não têm secretária e cadeira na sala de aula. Ou não vão à escola, trabalham, não têm casa, vão à guerra.

— Isso não me parece possível.

Lembrei-me do valor educativo da utopia e não disse nada. Lembrei-me de como eles nos ensinam o mais importante de tudo: a pequena filosofia, o afecto sem medo das palavras, a variabilidade do tempo, a gargalhada dobrada. Ao ouvir a Leonor e o Manel voltei a ter cinco, três anos. Quantos anos se tem quando se acredita? Quantos anos se tem quando se deixa de acreditar?

Nas fotografias militantes do Manuel Roberto está a necessidade deste Dia Mundial da Criança ainda existir. E nas palavras das minhas crianças está a utopia necessária para podermos sorrir. Não é apenas inocência. É o sonho ainda habitado, sem impossíveis nem preconceitos. Precisamos deste olhar, de fábricas de infância para criar os moldes perdidos algures no caminho. De achar de novo inimaginável um menino ir à guerra, uma escola não ter cadeiras, uma casa não ter tecto. De dizer “isso não me parece possível” com a autoridade da infância.

Contei-lhes o necessário para ainda acreditarem sem deixarem de saber o tanto que há para mudar. 

— As crianças têm todas os mesmos direitos. Mas às vezes isso não acontece assim.
— Eu sei. Mas acho mal.

E o tom de final de conversa já instalado.

— Eu também acho mal...

Não falamos mais do assunto. O Manuel Roberto ia fotografá-los dali a nada, para um trabalho no jornal da tia sobre o Dia Mundial da Criança. 

— Temos de fazer alguma coisa para a fotografia?
— Têm de fazer o que quiserem.
— Então vamos só brincar.

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