Poder votar sem poder escolher: o problema do Euro nas democracias europeias
Face à percepção de austeridade permanente e de retrocesso do bem-estar em Itália, o que estamos a assistir é um regresso das preferências dos eleitores pela forma de governação económica tradicional do país — inflação e moeda fraca.
1. Os eleitores podem votar em partidos com programas anti-Euro, ou anti-União Europeia, mas tais partidos devem ser impedidos de governar se puserem em causa as regras de governação da Zona Euro. Esta é uma regra (limitação) que não está inscrita nos Tratados europeus, nem nas constituições nacionais, mas é praticamente consensual entre o establishment europeísta. É vista como uma necessária "válvula de segurança" para preservar a integração — a excepção a esse consenso era o Reino Unido, que está da saída da União Europeia. Mas na actual União são crescentes as tensões entre essa regra, ou prática europeísta, e o princípio da escolha democrática a nível nacional. As últimas eleições legislativas em Itália, ocorridas a 4/03/2018, mostraram, de uma forma aguda, essas tensões. Está em curso um choque entre a governação da Zona Euro, tal como está prevista nos Tratados e — sobretudo — é posta em prática pelas instituições europeias (Comissão, BCE e Conselho / Eurogrupo), e as escolhas dos eleitores nacionais em vários Estados. Importa lembrar que o vencedor em Itália foi o Movimento 5 Estrelas (M5S), de Luigi Di Maio, com 32,7% e, de alguma forma também, a Liga de Matteo Salvini com 17,4% dos sufrágios. Assim, cerca de 50% do eleitorado votou em partidos contestatários da União Europeia, ou, pelo menos, das suas políticas, na sua formulação e prática actual. A tensão entre o Euro, tal como foi arquitectado a nível europeu, e as escolhas políticas democráticas que podem ser feitas a nível nacional, merece assim, uma análise.
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1. Os eleitores podem votar em partidos com programas anti-Euro, ou anti-União Europeia, mas tais partidos devem ser impedidos de governar se puserem em causa as regras de governação da Zona Euro. Esta é uma regra (limitação) que não está inscrita nos Tratados europeus, nem nas constituições nacionais, mas é praticamente consensual entre o establishment europeísta. É vista como uma necessária "válvula de segurança" para preservar a integração — a excepção a esse consenso era o Reino Unido, que está da saída da União Europeia. Mas na actual União são crescentes as tensões entre essa regra, ou prática europeísta, e o princípio da escolha democrática a nível nacional. As últimas eleições legislativas em Itália, ocorridas a 4/03/2018, mostraram, de uma forma aguda, essas tensões. Está em curso um choque entre a governação da Zona Euro, tal como está prevista nos Tratados e — sobretudo — é posta em prática pelas instituições europeias (Comissão, BCE e Conselho / Eurogrupo), e as escolhas dos eleitores nacionais em vários Estados. Importa lembrar que o vencedor em Itália foi o Movimento 5 Estrelas (M5S), de Luigi Di Maio, com 32,7% e, de alguma forma também, a Liga de Matteo Salvini com 17,4% dos sufrágios. Assim, cerca de 50% do eleitorado votou em partidos contestatários da União Europeia, ou, pelo menos, das suas políticas, na sua formulação e prática actual. A tensão entre o Euro, tal como foi arquitectado a nível europeu, e as escolhas políticas democráticas que podem ser feitas a nível nacional, merece assim, uma análise.
2. É necessário não iludir a realidade. A economia italiana, tal como a generalidade das economias do Sul da Europa, tem evidenciado importantes dificuldades em adaptar-se às regras de governação económica da Zona Euro. Em Itália, uma parte substancial da população vê — com maior ou menor fundamento —, na perda da soberania monetária uma causa maior dos seus problemas económicos e de bem-estar. Na memória estão os tempos de dinamismo económico da Itália dos anos 1980, quando dispunha de moeda nacional (a lira). O contexto actual parece corroborar essa percepção comum. Numa altura em que a Zona Euro voltou a ter níveis de crescimento económicos bastante significativos (média de 2,5% em 2017), a Itália ficou entre os mais baixos (1,5%). O país acumula também uma das dívidas públicas mais elevadas da Zona Euro e do mundo (131,8% do PIB). A par da Itália, o problema é, como já notado, um problema mais generalizado, com intensidades variáveis, afectando o Sul da Europa, com a dívida pública a atingir na Grécia 178.6 % do PIB, em Portugal 125.7 % e em Espanha 98.3 %. (Ver Eurostat, “Statistics Explained”, 2/05/2018). Para termos um padrão de comparação, esse valor é de 9% na Estónia, 56,7% na Holanda, 61,4% na Finlândia e 64,1% na Alemanha.
3. "Embora a questão mais urgente seja a de conter a insolvência potencial em que se encontram os países do grupo ‘Euro fraco’, a questão verdadeiramente central é a de esclarecer se os países deste grupo se conseguem adaptar às exigências do regime monetário do Euro, sem sacrificar a capacidade de realizar o seu potencial económico e de satisfazer as aspirações de bem-estar das respectivas sociedades. Ou se apenas conseguirão atingir este desiderato deixando a união monetária e regressando a um regime monetário com que viveram mais confortavelmente pelo menos as três décadas anteriores à criação da moeda única.” Essa foi a questão crucial levantada, de forma particularmente lúcida, por Vítor Bento durante a grave crise que afectou a Zona Euro entre 2010 e 2015. (Ver “Euro forte, Euro fraco” in Público, 3/10/2012). Ao contrário do que se poderia pensar, a questão não foi ultrapassada pela recuperação económica ocorrida a partir de 2015. Estamos perante um problema estrutural, não resolvido da Zona Euro. Como este notou também, o Euro juntou, "sob um mesmo regime monetário, dois grupos de países habituados a conviver com regimes monetários ajustados à sua cultura e às preferências sociais que dela emanam, diferentes entre si, e conducentes a divergentes resultados económicos. De um lado, um regime monetário inclinadamente inflacionário e gerador de uma moeda fraca, e, do outro, um regime comprometido com a estabilidade de preços e gerador de uma moeda forte." Antes do Euro, a tradição de governo económico em Itália, de inflação e moeda fraca como instrumentos de manter a competitividade da sua economia, sempre esteve do lado do primeiro.
4. Face à percepção de austeridade permanente e de retrocesso do bem-estar em Itália, o que estamos a assistir é a um regresso das preferências dos eleitores pela forma de governação económica tradicional do país — inflação e moeda fraca. O problema fundamental é que esta colide com a lógica instituída na Zona Euro. Poderia ser apenas um conflito de visões divergentes sobre a política monetária e económica. Mas a questão adquire uma nova intensidade — nacionalismo versus europeísmo —, pelo facto de as regras da Zona Euro serem as usuais da Alemanha do pós-guerra e da Europa do Norte. Para uns, são sinónimo de um benévolo e necessário “europeísmo”. Para outros, de uma malévola imposição "estrangeira" (alemã) aos italianos. No já referido "Euro Forte, Euro Fraco" de Vítor Bento, há também pistas para compreender este problema que reemergiu. "A arquitectura institucional definida para governar a Zona Euro alinhou-se pelo regime ‘Euro forte’ [Alemanha / Europa do Norte], pelo que os países do grupo habituado ao outro regime [Itália / Europa do Sul], para poderem ter sucesso económico dentro da União", necessitam de modificar "os seus comportamentos compatibilizando-os com os requisitos do regime monetário comum." Por outras palavras, necessitam, como já dito, de se adaptar (submeter para os mais críticos), a uma lógica de governação europeia fundamentalmente moldada pela Alemanha e Norte da Europa. A recusa do Presidente da República Italiana, Sergio Mattarella — um político do centro europeísta —, de Paolo Savona como Ministro da Economia e Finanças num governo de coligação entre M5S e a Liga é o choque frontal destas duas visões. O “pecado” de Paolo Savona seria ter um “Plano B” para uma possível saída de Itália do Euro. (Ver “Il “Piano B per l’Italia” nella sua interezza!” in Scenari economici, 5/10/2015). E ser também um forte contestatário do domínio monetário germânico da União Europeia, chamando ao Euro uma “prisão alemã”. (Ver “L’autobiografia-manifesto di Paolo Savona: ‘L’euro è una gabbia tedesca, ora piano B’” in La Stampa, 22/05/2018).
5. Poder votar sem poder escolher é o sentimento que se começa a instalar em muitos cidadãos eleitores não apenas em Itália, mas um pouco por toda a União Europeia. Acaba por colocar em causa a própria legitimidade da governação democrática. O establishment europeísta refugiou-se na habitual opção tecnocrática, como evidencia tentativa (falhada) do Presidente da República italiano colocar Carlo Cottarelli a chefiar um novo governo — um tecnocrata do sector financeiro e antigo director do FMI. (Ver FMI, “Carlo Cottarelli Director, Fiscal Affairs Department”). Mas iludir o voto dos eleitores, mesmo que com a intenção de os proteger de “más escolhas”, traz problemas políticos (ainda mais) graves. Ao tentar impedir um governo que resultava das escolhas dos cidadãos, Sergio Mattarella deu credibilidade ao argumento de Matteo Salvini de que a Itália é “um país de soberania limitada”. As sondagens mostram um fortalecimento político da Liga que atinge agora 25 % das intenções de voto. No caso de uma hipotética coligação entre o M5S e a Liga, os dois partidos poderiam mesmo vencer em cerca de 90% dos círculos uninominais. (Ver “Lega-5 Stelle insieme vincerebbero il 90% dei collegi uninominali” in Corriere della Sera, 29/05/2018). Entretanto, quando a única saída política parecia ser a convocação de novas eleições, ocorreu uma reviravolta política digna do “Príncipe” de Maquiavel, seja qual(ais) for(em) o(s) motivo(s) desta. Giuseppe Conte, o nome indicado pelo M5S e pela Liga para Primeiro-Ministro, volta, afinal, a poder formar governo. Paolo Savona, que esteve no cerno do conflito com o Presidente da República, passará para os Assuntos Europeus e na Economia e Finanças ficará Giovanni Tria. Para além das suas idiossincrasias políticas, a Itália é a face mais visível de um problema estrutural da construção europeia sempre adiado. A questão é saber se este é resolúvel pela reforma da Zona Euro, seja o que for que isso signifique em concreto. A “válvula de segurança” tecnocrática tem mantido a arquitectura do Euro e a estabilidade financeira, mas à custa de coarctar escolhas democráticas nacionais. Mais tarde ou mais cedo, a contradição, se não for ultrapassada, vai tornar-se explosiva.