Notícias do outro lado da cortina

Um romance pornográfico do qual emana um tristíssimo odor a solidão e desespero.

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Nuno Ferreira Santos

Scott Fitzgeral ter-se-á, provavelmente, enganado quando, em Last Tycoon, escreveu que não havia segundos actos na vida dos americanos – para ficarmos apenas pela literatura temos o caso Roth: ao lançar O Teatro de Sabbath em 1995, com 62 anos de idade, o americano conheceu uma espécie de segundo fôlego que podemos, sem exagero, considerar superior à obra criada até então. Talvez Roth já não tivesse nada a perder; talvez a provocação e o humor já não fossem suficientes – certo é que a partir daí o provocador deixou de ser apenas provocador e levou algumas das características da sua escrita (o desejo, uma espécie de raiva como motor da individualidade masculina) ao clímax, sem freios, sem meias medidas, sem pedir desculpa, sem paninhos quentes. A escrita de Roth, a partir daí, converteu-se num trator que espatifou tudo que lhe apareceu à frente, da ideia de sonho americano à de gratificação social – passando por algumas próstatas.

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Scott Fitzgeral ter-se-á, provavelmente, enganado quando, em Last Tycoon, escreveu que não havia segundos actos na vida dos americanos – para ficarmos apenas pela literatura temos o caso Roth: ao lançar O Teatro de Sabbath em 1995, com 62 anos de idade, o americano conheceu uma espécie de segundo fôlego que podemos, sem exagero, considerar superior à obra criada até então. Talvez Roth já não tivesse nada a perder; talvez a provocação e o humor já não fossem suficientes – certo é que a partir daí o provocador deixou de ser apenas provocador e levou algumas das características da sua escrita (o desejo, uma espécie de raiva como motor da individualidade masculina) ao clímax, sem freios, sem meias medidas, sem pedir desculpa, sem paninhos quentes. A escrita de Roth, a partir daí, converteu-se num trator que espatifou tudo que lhe apareceu à frente, da ideia de sonho americano à de gratificação social – passando por algumas próstatas.

Deixando de lado as comparações de grandeza literária: é possível ler O Escuro Que Te Ilumina a esta luz: a da uma segunda vida por via da libertação. O que acontece quando um escritor se liberta das rédeas de bom comportamento, quando deixa de ponderar como vai ser lido, quando fecha os olhos ao que é tabu? O que é que acontece quando espia do outro lado da cortina, marimbando-se para as convenções.

Espiar é o verbo: o protagonista de O Escuro Que Te Ilumina é um homem – solitário, professor de literatura – que espia os seus vizinhos, não porque esteja interessado em conhecer a marca de iogurtes que guardam no frigorífico ou o segredo do cofre escondido por trás do retrato de família, mas pelo fascínio por descobrir o que as pessoas escondem, o que as pessoas escolhem não contar à sociedade, seja a pornografia agressiva que vêem ou a visita de um massagista a um casal. Irá sendo cada vez mais claro que em certa medida é como se o acesso à privacidade dos outros, ao segredo dos outros, ao íntimo dos outros pudesse trazer-lhe uma intimidade em falta, restituir-lhe uma interioridade que (dentro de si, e passe a expressão) tem o saldo no negativo.

Entre esses vizinhos inclui-se uma mulher que o protagonista idealiza – o tom é romântico in excelsis, adequado à idelização. Nada sabemos sobre ela – e quase nada sabemos sobre ele: é professor de literatura, não lhe conhecemos amigos ou família, ou pelo menos ele não faz menção de qualquer tipo de relação emocional com outros seres humanos que não aqueles que espia. Quando espiar deixa de ser suficiente ele segue um casal vizinho; quando seguir deixa de bastar ele desce à noite, aos bares de sexo, aos parques de estacionamento onde se pratica o dogging, a prática de casais terem  sexo no carro (eventualmente com desconhecidos).

O universo deste homem é o de uma recomposição da interioridade: na ausência de vínculos emocionais de qualquer espécie sobre uma espécie de remorso: a dor de nunca ter iluminado uma sala ao entrar. Ele sabe ter sido sempre uma espécie de reserva a que as mulheres recorrem quando o homem que desejaram lhes falha – este é um homem traído pelo seu corpo, um homem que nos informa de ser sido sempre gordo e apenas desejado pelo seu intelecto, não pelo que o humano tem de mais primário: o corpo, o lado animal. É um homem que manca porque lhe desejaram pouco a quinta pata. E de modo a que o desejem (porque só o desejo o preencherá internamente) faz o que aparentemente quase todos os seres humanos fazem: vai para o ginásio de modo a emagrecer e ganhar músculo.

Peço desculpa por aquela piada ali atrás, a da quinta pata, não sei se pode abusar assim da linguagem nos dias de hoje; estou velho, o meu super-ego esboroou-se, deixei-me levar pela linguagem do livro – que, a propósito, encontra um equilíbrio difícil: passar do romantismo inicial para a crueza da descrição de cenas de sexo sem excesso de adornos ou adjectivos que compensem a masculinidade ferida, e sem, em simultâneo, se quedar por descrições mecânicas. Não estamos em território de exaltação Updikeana – isto é Riço, ou antes: é o Riço que se ergueu, por entre o mar de vaginas e rabos e mangalhos.

Um dos feitos deste cuidado linguístico com a imersão do protagonista no submundo dos clubes de sexo e dos estacionamentos junto à praia é conseguir tornar real aquilo que para uma boa parte da humanidade é texto de revista – o dogging, os butt-plugs são revelador como elementos de uma cerimónia de alteridade, que os humanos usam para serem «outra coisa», fartos que estão de serem o que são durante o dia.

Crescemos num mundo que nos confia a ideia de que o excesso, o limite – as drogas, o sexo gratuito, etc – estão confinadas aos outros (os tatuados, as estrelas rock, os ricos). E o que emerge destas personagens, ou destes recortes de personagens, já que a própria natureza destas relações não permite um conhecimento profundo das pessoas com quem se emperna momentaneamente, é que estas pessoas não estão escondidas no topo de uma pilha de dinheiro, são pessoas de todos os dias, a senhora juíza, o professor universitário, a estudante de letras que gosta de fazer bicos com o carro em andamento, a economista do banco, etcetcetc.

A haver choque não é o da linguagem – é o de quanto os seres humanos são capazes de encerrar dentro de si, é a dimensão de secretismo que atribuem aos seus prazeres, a vergonha que transportam, a necessidade absurda de saírem de si mesmo (entrando em outros). Na sua vertigem este homem aparentemente heterossexual, às tantas, já não quer saber se é um homem que está a enrabar (ou a enrabá-lo).

Durante o período de imersão do protagonista na (por assim dizer) devassidão a sua mulher idealizada (bem como os vizinhos) desaparece do diário (a estrutura que Riço usou para organizar esta espécie de revanche tardia por usura de pénis); quando ela volta é apenas para um cameo: parece ter havido um envolvimento entre eles, que nada altera: ela já partiu, ele ainda a idealiza, sem raiva, sem outra mágoa que a que já trazia de antanho.

Como uma personagem de Hemingway este homem não “aprende” nada; para ele é tarde, fundir-se num casal é uma impossibilidade e, apesar da nova magreza, da nova beleza, dos corpos que o desejam, a dor já metastaseou, ele já não é um ser na direcção do amor, é um dildo humano; mas talvez haja uma lição aqui – a saber: nem sempre há um laço cor-de-rosa no fim da história, a redenção é muito bonita mas percentualmente escassa e quem levanta a taça não são os falhados.

Isto não é um romance pornográfico, antes um mergulho na solidão, no desespero a que a os seres humanos se conduzem quando sentem uma falha primordial, um mergulho nos mecanismos de compensação dos seres humanos, quando dão por si mancos de coração. Há coragem, em escrever assim.