Aborto precisou de dois referendos e dez anos para ser despenalizado

Desde o célebre "Não matem o Zezinho" à frase "Não matem os velhinhos" ouvida ontem às portas do Parlamento, muito mudou. Ou talvez não: aprovado por nove votos no Parlamento, o aborto precisou de dois referendos e mais de dez anos para se fazer fora da clandestinidade.

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A interrupção voluntária da gravidez foi despenalizada em 2007 Carla Carvalho Tomás

A interrupção voluntária da gravidez (IVG) por vontade da mulher foi a primeira daquelas a que se tornou moda chamar "causa fracturante". Porque dividiu a classe política e baralhou disciplinas partidárias, tendo precisado de mais de dez anos e dois referendos para sair da clandestinidade, após anos em que, tal como na eutanásia, os partidários do "sim" e do "não" se digladiaram, com a Igreja Católica a mostrar o poder da sua capacidade de mobilização. 

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A interrupção voluntária da gravidez (IVG) por vontade da mulher foi a primeira daquelas a que se tornou moda chamar "causa fracturante". Porque dividiu a classe política e baralhou disciplinas partidárias, tendo precisado de mais de dez anos e dois referendos para sair da clandestinidade, após anos em que, tal como na eutanásia, os partidários do "sim" e do "não" se digladiaram, com a Igreja Católica a mostrar o poder da sua capacidade de mobilização. 

A frase "Não matem os velhinhos", ouvida ontem às portas do Parlamento, quase soou a deja vu: quem não se lembra do slogan "Não matem o Zezinho", ouvido logo aquando do primeiro referendo à despenalização do aborto? Esta - recorde-se - foi a primeira questão "de consciência" a ser referendada em Portugal – no mesmo ano do referendo à regionalização: a 28 de Junho de 1998. E ainda hoje não falta quem aponte António Guterres, então primeiro-ministro, como o principal responsável pela vitória do “não” nesse primeiro referendo, pela sua falta de apoio à campanha pelo “sim”, iniciada pelo seu próprio partido.

Nove votos bastaram

Recuemos. No dia 4 de Fevereiro de 1998, o Parlamento aprovou na generalidade o projecto de lei do PS, protagonizado por Sérgio Sousa Pinto, que permitia o aborto por vontade da mulher até às dez semanas. Nove votos bastaram para fazer passar a lei, numa votação que se arrastou até depois das 21h00. Mas a festa durou pouco tempo. Na manhã seguinte, o então primeiro-ministro e secretário-geral do PS, António Guterres, e o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, ambos católicos e ambos com posições assumidas contra a despenalização, esqueceram as clivagens partidárias e surpreenderam todos ao anunciarem um acordo para sujeitar a matéria a referendo.

Guterres sabia que estaria a barrar o caminho aberto por um deputado do seu próprio partido, Sérgio Sousa Pinto, 23 anos, recém-chegado ao Parlamento. Foi a forma encontrada de adiar o problema, já que, com a Igreja Católica a revelar-se poderosíssima no apelo ao “não”, dificilmente uma sociedade que mal despertara para o tema e muito menos para a possibilidade de assumir em mãos próprias aquilo que se habituara a delegar nos políticos decidiria em sentido contrário.

Na consulta popular que se seguiu, a abstenção foi a grande vencedora: 68%,1. E, por não ter tido mais do que 50% de votos expressos (1.308.130 pessoas votaram sim e 1.356.754 votaram não), o referendo não foi vinculativo. Ainda assim, nos oito anos seguintes, PS e PSD puseram o assunto a marinar. O PS alegava que só um novo referendo, com resultado positivo, permitiria despenalizar o aborto. E o PSD chegou a travar a realização de uma nova consulta popular em 2004, ao chumbar a petição para um novo referendo promovida pelo PS, PCP e BE.

Foi preciso esperar até ao final de 2006 para que o Parlamento convocasse novo referendo, que viria a realizar-se em Fevereiro de 2007. Aqui, perante a mesmíssima pergunta, 59,25% dos eleitores votaram sim (2.231.529 votos), contra 40,75% (1.534.669 votos) pelo não. A diferença é que, para a campanha que antecedeu este segundo plesbicito, nasceram 19 movimentos: cinco pelo sim e 14 pelo não. Para o encarniçamento discursivo em torno do aborto pesaram também as escrutinadíssimas e mediáticas condenações ditadas pelos tribunais da Maia e de Aveiro a mulheres que haviam praticado aborto e que deixaram Portugal mal visto à luz dos holofotes da imprensa internacional, ao mesmo tempo que agudizaram a intolerabilidade social face a uma legislação que se mostrava tão penalizadora para as mulheres.

Sócrates fez avançar segundo referendo

Mais do que isso, o PS estava agora, com José Sócrates sentado na cadeira de secretário-geral e de primeiro-ministro, clara e empenhadamente do lado do “sim”, juntamente com o PCP, o BE e o PEV. A questão, aliás, fora inscrita no programa eleitoral socialista que, em 2005, dera maioria absoluta a Sócrates. E permitiu que, apenas dois anos depois, Portugal se posicionasse do outro lado da barricada; o lado dos que esgrimiam o problema de saúde pública decorrente dos abortos clandestinos como argumento pró-escolha, a par das reivindicações feministas do direito da mulher ao seu corpo.

Tal não impediu, porém, que Cavaco Silva, na qualidade de Presidente da República, impusesse alguns travões de que são exemplo a obrigatoriedade de um período de três dias de reflexão, bem como o direito à objecção de consciência por parte dos médicos.

Cavaco tenta travar fim das taxas moderadoras

Foi então uma clara derrota para a Igreja Católica, que em nome de uma ideologia pró-natalista, católica e conservadora, continuava (continua?) a colocar à pílula o rótulo de “produto do demónio”. E a prova de que a despenalização da IGV continua, tantos anos depois, a provocar amargos de boca é que, no último plenário da anterior legislatura, em Julho de 2015, a maioria PSD/CDS-PP reintroduziu o pagamento de taxas moderadoras na prática da IGV, bem como a obrigatoriedade de a mulher comparecer a consultas com um psicólogo e um técnico de serviço social, a par da possibilidade de os médicos objectores de consciência participarem nas várias fases do processo de aconselhamento. Foi, acusou o PCP, “um acto de revanchismo” contra a lei do aborto.

A medida viria a ser revogada, no início de 2016, já com António Costa como primeiro-ministro. A poucos dias de deixar Belém, o Presidente da República, Cavaco Silva, vetou as alterações à lei, com o argumento de que faltou um “amplo e esclarecedor debate público” e que, além disso, a nova lei deixava as grávidas mais desprotegidas no direito à informação.

Curiosidade: a deputada do PSD, Paula Teixeira da Cruz, que agora se posicionou favorável à eutanásia, foi a única a furar a disciplina de voto social-democrata, assumindo-se a favor da revogação das taxas, o que lhe valeu um processo disciplinar. E, do lado do PS, o deputado Ascenso Simões, também assumidamente contra a despenalização da eutanásia, também se juntou ao PSD e ao CDS nos votos contra o fim da cobrança da taxa moderadora. No início e no fim da vida, para estes deputados, a consciência pesou mais do que a disciplina partidária.