Sobre a eutanásia
Não se concebem autonomia e liberdade sem responsabilidade. A dignidade da pessoa começa com o respeito da dignidade da vida.
1. A vida humana é inviolável (diz o artigo 24.º, n.º 1 da Constituição), tal como a integridade moral e física das pessoas (segundo o artigo 25.º). Não pode haver, em caso algum, pena de morte (artigo 24.º, n.º 2); e, em coerência, não se admite extradição para Estado cujo Direito a preveja.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. A vida humana é inviolável (diz o artigo 24.º, n.º 1 da Constituição), tal como a integridade moral e física das pessoas (segundo o artigo 25.º). Não pode haver, em caso algum, pena de morte (artigo 24.º, n.º 2); e, em coerência, não se admite extradição para Estado cujo Direito a preveja.
Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a proteger (artigo 64.º, n.º 1), um direito que, para o Estado, implica a existência de um serviço de saúde universal, geral e tendencialmente gratuito [artigo 64.º, n.º 2, alínea a)], com garantia de acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação [artigo 64.º, n.º 3, alínea c)] (a que deve acrescentar-se a medicina paliativa não só na lógica do sistema mas também por força da cláusula aberta de direitos fundamentais do artigo 16.º, n.º 1).
Acrescem as incumbências, dentro da linha de efetivação dos direitos sociais – tarefa fundamental do Estado [artigo 9.º, alínea d)] –, relativas à família (artigo 67.º) e à infância, à juventude, aos cidadãos portadores de deficiência e à terceira idade (artigos 69.º e 72.º).
2. Por outro lado, para essa efetivação, tem de contribuir a sociedade (no âmbito do aprofundamento da democracia participativa (artigo 2.º, in fine) e à luz do objetivo de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 1.º, 2.ª parte).
As famílias, em primeiro lugar, e as instituições, as associações e os grupos da sociedade civil devem dar todo o apoio, material e espiritual, aos seus membros que se encontrem em estado de carência de qualquer ordem e, desde logo, aos que se receie que possam estar às portas da morte.
A solidariedade entre gerações não se esgota no ambiente [artigo 66.º, n.º 2, alínea d)].
3. São bem distintas, como toda a gente ou quase toda a gente reconhece, duas situações:
– a situação da pessoa que, vítima de doença ou de acidente muito grave, já não tem tratamento médico possível ou em que o tratamento, a prolongar-se, seria inútil ou artificial;
– a situação da pessoa que, por causas próximas, ainda assim pode receber tratamento, pelo menos cuidados paliativos, embora com pouca esperança, a curto ou a médio prazo, de sobreviver.
No primeiro caso, é o estado físico que sobreleva. No segundo caso, com o sofrimento físico acumula-se o sofrimento psíquico, levando à perda de vontade de viver, a uma infelicidade profunda.
4. No primeiro caso, a não se cair em excessos terapêuticos sem qualquer resultado, tudo está em deixar morrer, em deixar morrer em paz.
No segundo caso, estaremos diante de eutanásia, se a pessoa, ainda podendo viver, deixar de ter cuidados médicos e morrer – ser morta a seu pedido e com a intervenção de um ou mais médicos.
No primeiro caso, não se afeta a inviolabilidade da vida humana. De resto, já temos, entre nós, o chamado testamento vital.
No segundo caso, ela é afetada flagrantemente, sejam quais forem as circunstâncias e as intenções. Ninguém pode dispor da sua vida, como ninguém pode alienar a sua liberdade ou o respeito por si mesmo.
Não se concebem autonomia e liberdade sem responsabilidade. A dignidade da pessoa começa com o respeito da dignidade da vida.
5. Os projetos agora apresentados na Assembleia da República podem ser considerados, porventura, relativamente moderados.
Merecem, todavia, além da sua raiz de inconstitucionalidade, mais estas obervações: 1.º) não foram objeto de intenso debate nacional que a matéria justificava; 2.º) como a experiência do aborto mostra (em que se passou da despenalização em determinadas emergências para a legalização até dez semanas a pedido da mulher), podem conduzir a diplomas cada vez mais facilitadores da eutanásia; 3.º) como a experiência das poucas legislações que a aceitam, há sempre o risco de aproveitamentos de tipo egoístico, económico ou não.
6. Não basta invocar esta inconstitucionalidade. Importa, não menos, invocar a inconstitucionalidade por omissão, por o Estado não conferir exequibilidade plena às normas constitucionais sobre direitos económicos, sociais e culturais, em especial à do serviço nacional de saúde. Redunda em hipocrisia dizer que se defende a vida humana e não defender a plena realização do serviço nacional de saúde, incluindo cuidados paliativos e cuidados continuados.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
O Texto foi escrito antes de ser conhecida a votação no Parlamento