Os “lapsos” de Pedro Siza Vieira contados às criancinhas
O que está em causa é uma grosseira tentativa de nos iludir com um truque dissimulado em manobras de diversão da escola da propaganda.
O Governo que, por obra e graça de António Costa, conseguiu “anestesiar” o Bloco e o PCP (Francisco Assis disse-o no Congresso do fim-de-semana) aparece agora empenhado em anestesiar a exigência cívica do país. Para o conseguir, dispensa drogas das farmácias ou plantas medicinais dos ervanários e ataca com uma receita digna dos malabaristas profissionais: o ilusionismo. Com a pradaria a arder à custa do “lapso” do ministro Pedro Siza Vieira, com o calendário judicial e as fugas ao segredo de Justiça a ressuscitarem o fantasma de José Sócrates e o duplo salário, viscoso e fétido, de Manuel Pinho, o Governo tenta apagar o fogo com “um guia prático para novos membros do Governo”. Se em causa estivesse apenas o delírio alguém que querer matar a caça grossa das suspeitas de corrupção e das incompatibilidades com uma arma de chumbo, a rapaziada dava umas risadas e seguia em frente; mas o que está em causa é uma grosseira tentativa de nos iludir com um truque dissimulado em manobras de diversão da escola da propaganda. Como se vivêssemos numa democracia que se dissolve sem talento nem suor no engano fácil. Como se fossemos criancinhas que se distraem com um simples rebuçado.
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O Governo que, por obra e graça de António Costa, conseguiu “anestesiar” o Bloco e o PCP (Francisco Assis disse-o no Congresso do fim-de-semana) aparece agora empenhado em anestesiar a exigência cívica do país. Para o conseguir, dispensa drogas das farmácias ou plantas medicinais dos ervanários e ataca com uma receita digna dos malabaristas profissionais: o ilusionismo. Com a pradaria a arder à custa do “lapso” do ministro Pedro Siza Vieira, com o calendário judicial e as fugas ao segredo de Justiça a ressuscitarem o fantasma de José Sócrates e o duplo salário, viscoso e fétido, de Manuel Pinho, o Governo tenta apagar o fogo com “um guia prático para novos membros do Governo”. Se em causa estivesse apenas o delírio alguém que querer matar a caça grossa das suspeitas de corrupção e das incompatibilidades com uma arma de chumbo, a rapaziada dava umas risadas e seguia em frente; mas o que está em causa é uma grosseira tentativa de nos iludir com um truque dissimulado em manobras de diversão da escola da propaganda. Como se vivêssemos numa democracia que se dissolve sem talento nem suor no engano fácil. Como se fossemos criancinhas que se distraem com um simples rebuçado.
Quando se soube que membros do Governo tinham ido a convite ver jogos de futebol ao Europeu de França, apresentaram-nos como solução uma cartilha detalhada com as prendas que ministros ou secretários de Estado podem receber ou as viagens que não se podem fazer. Depois, as trapalhadas continuaram e o Governo avançou com um pomposo Código de Conduta. Mas como nem isso foi suficiente para acabar com os “lapsos” de ministros ou candidatos a ministros com a cabeça no ar, eis que agora cada candidato a um lugar no Governo vai ter de decorar um guia com uma lista detalhada de diligências, informações e obrigações que terão de respeitar para evitarem as ciladas da lei. Da mesma forma que se diz aos meninos no primeiro dia de escola que não devem falar com adultos estranhos ou que só podem passar a rua nas passadeiras, a próxima geração de governantes saberá assim preto no branco que terá de entregar nos prazos previstos as suas declarações de rendimentos ao Tribunal Constitucional ou que terá de abdicar de assumir cargos executivos na empresa lá da rua para se dedicar em exclusivo à governação. Custa ver uma ministra sensata e competente como Maria Manuel Leitão Marques cair em tão deplorável operação.
Ainda não sabemos ao certo como será o articulado de tão indispensável guia, mas basta imaginá-lo para que se revele tão patético e infantil que o melhor mesmo é esquecer que existe e tentar perceber o que terá determinado o seu nascimento. Ora, é aqui que a intenção do Governo se expõe de forma cruel. Não é preciso sequer muita reflexão para se perceber que em causa está apenas uma manobra destinada a criar uma cortina de fumo em torno das graves suspeições que pairam sobre o ministro Pedro Siza Vieira. A finalidade do guia e da sua prometida checklist tem como propósito a ideia de que o cumprimento imperioso da lei não é nada mais do que uma soma de tarefas rotineiras e burocráticas que facilmente descambam em omissões, falhas de memória e outros “lapsos”. Não está em causa uma exigência legal e ética que obriga todos os cidadãos, mas uma banalidade que se cumpre por prescrição e se falha por distracção. Não estão em causa pessoas da mais alta craveira intelectual e cívica, mas meros peões de um jogo a quem se diz: “Meninos, para se portarem bem façam isto e mais isto”. Mais importante do que saberem o que diz a lei em matéria de transparência no exercício de cargos políticos e qual é o seu espírito, aos candidatos ao Governo basta passar os olhos por uma lista de deveres tão banal como o papelzinho com as compras da semana que se leva ao supermercado. O primeiro-ministro decretou um assumido incumprimento da lei como um “lapso” e vai daí é necessário criar uma liturgia capaz de dar consistência ao conceito.
Essa construção é tão confrangedora que se torna insultuosa. Acreditar que um ministro com as competências jurídicas de Pedro Silva Vieira criou por “lapso” uma sociedade na qual assumiu o cargo de sócio-gerente, depois de saber que ia para o Governo, implica uma de duas verdades: ou o ministro é juridicamente incompetente ou a sua assinatura no documento de constituição da sociedade foi deliberada e consciente. Seja qual for o caminho que escolhamos, o ministro esteve mal. E não é preciso ir ao ponto de dizer que ele deve ser suspeito de ter feito negociatas duvidosas: basta dizer que violou a lei. O Tribunal Constitucional determinará que pena deve cumprir por essa violação (ou se não cumprirá pena nenhuma), mas, até essa soberana decisão, ninguém queira que voltemos a cair nessa cantilena que execra a “política de casos”, na qual os políticos são perseguidos, vítimas de julgamentos na praça pública, sem direito à presunção de inocência. Tudo o que hoje estiver em causa com suspeitas associadas a ministros ou secretários de Estado merece tolerância zero.
E não, todo o cuidado do Governo em proteger Pedro Siza Vieira das críticas, das perguntas ou das suspeitas lançadas nas últimas semanas não se justifica com a presunção de ilegalidade da dupla função de ministro na esfera pública com a de sócio gerente na área privada. A teoria do “lapso” e a prática da checklist vão bem mais longe. Tentam deitar uma carrada de cinza no percurso de Pedro Siza Vieira na órbita da Operação Pública de Aquisição (OPA) que os accionistas chineses da EDP lançaram sobre a companhia. O jurista que é um alto dirigente de uma sociedade de advogados, a Linklaters, é o procurador do interesse público num programa que acaba por produzir alterações na lei que se encaixam como luvas de seda nos interesses de um dos seus clientes; é o intermediador que os recebe em vésperas do anúncio da OPA. Depois, quando toda a pedra estava partida e o caminho aberto, aparece com a aura de um Egas Moniz a pedir ao primeiro-ministro que o liberte dos negócios da energia.
Pedro Siza Vieira tornou-se um problema para o Governo. Pode ser o homem mais honesto à face da terra (e nada que saibamos compromete a sua honorabilidade pessoal e profissional), mas queimou a sua credibilidade política em manobras negociais suspeitas e extinguiu-se como ministro ao cometer uma ilegalidade em vésperas de tomar posse. Perante o problema, o Governo reage com códigos, guias e checklists, caindo no laxismo que tudo relativiza e na condescendência que tudo engole. Está mal. Nem o caso de Pedro Siza Vieira não pode ser visto como um lapso nem guia que o Governo tem no prelo deve ser aceite como um contributo para evitar a sua repetição. Na realidade, não passa de uma pá de areia que nos querem atirar aos olhos.